Três personagens em conflito


Entre todos os filmes feitos sobre ambição, sobre homens perdidos no deserto e mortos pelo desejo de enriquecerem, Ouro e Maldição está entre os melhores. Os três personagens principais do filme venderam suas almas para algumas moedas de ouro, assim como o diretor Erich Von Stroheim quase perdeu a sua ao perseguir o desejo de realizar um épico hiper-realista, filmado centímetro a centímetro para atingir os detalhes exigidos pelo livro em que se baseia (McTeague, de Frank Norris). O resultado foi a mutilação de sua obra, que, de nove horas, terminou com pouco mais de duas (felizmente, nos anos 90, o restaurador Rick Schmidlin fez sobreviver uma versão de aproximadamente quatro horas). As atitudes de Stroheim o tornaram conhecido como megalomaníaco, pois o desejo de grandiosidade de alguns diretores em seus filmes geralmente recebe o tal nome. Muitos pagaram com a carreira, e um exemplo não muito antigo é o de Michael Cimino, responsável pelo premiado O Franco-Atirador e pelo pouco aplaudido O Portal do Paraíso. Como mostrou a história, cometer tais erros no Estados Unidos tem um preço mais caro a pagar – que inclui um caminho sem volta ao esquecimento, o risco de levar os estúdios a perdas gigantes de dinheiro e o fim por completo (como foi o caso de Cimino); na Europa, outros diretores investiram em grandes produções que nem sempre trouxeram retorno financeiro; outras vezes, pior ainda, não se mostraram interessantes, como 1900, de Bertolucci, e O Deserto dos Tártaros, de Zurlini.

Stroheim, na época em que Ouro e Maldição fora realizado, ainda não era considerado um autor de cinema. Tal título, num momento em que a indústria crescia absurdamente e cujas preocupações sempre se voltavam ao lado mercantil, inexistia para a grande massa e acabava por transferir aos diretores o ofício de “fazedores de filmes”, apenas, enquanto davam luz logo cedo a trabalhos que mais tarde seriam considerados pioneiros da arte cinematográfica. Stroheim havia sido assistente de Griffith em O Nascimento de uma Nação e Intolerância, filmes que moldaram as noções básicas da narrativa cinematográfica e que, com muita certeza, despertou o olhar do cineasta para a possibilidade de antecipar um importante movimento da década de 40. Mal sabia ele. O neo-realismo italiano abusava de atores não profissionais e renegava, enquanto a Itália via-se em pedaços, os luxuosos estúdios tão típicos de Hollywood. Em Ouro e Maldição, os atores são, aparentemente, profissionais – como não poderia deixar de ser em uma produção da MGM – e as locações, como exigiu Stroheim, as mais realistas possíveis. Ficou famosa a história sobre as filmagens no deserto, para os momentos finais, quando o calor passava dos 40° e as câmeras tiveram de ser resfriadas com panos molhados.

A megalomania do cineasta, para o bem ou não, rendeu um dos filmes mais poderosos do cinema americano. Na sua aparência – ou apenas como é observado superficialmente – mostra um roteiro arraigado às situações simples da vida e que fazem, por outro lado, expelir algo ainda mais forte: o desejo por riqueza preso às pessoas do início do século XX. Enquanto a América tentava se firmar como um berço de possibilidades, homens e mais homens arriscavam suas vidas em minas de minério e petróleo, num misto de selvageria e aventura (como mostrou tão bem Sangue Negro, produção mais recente que, de certa forma, deve algo a Ouro e Maldição). Mesmo apoiado numa simples mistura, o roteiro apresenta-se especial. O público atual está acostumado a ver filmes com finais trágicos, onde não é deixado nada de bom; na década de 20, por sua vez, um texto nesse formato poderia não ser um material tão atrativo para as pessoas em geral. A presença de um herói e uma garota sincera para este conquistar poderia dar vez, mesmo abusando do clichê, a uma maneira mais rápida e confiável de atingir o sucesso desejado. No filme de Stroheim nada resta para despertar a paixão das pessoas quanto à beleza da vida ou mesmo a necessidade da arte como apenas um reflexo distorcido da realidade. Nesse trabalho, o que se vê é o despertar para vida de grandes trunfos, com direito a uma boa profissão e um casamento de sucesso; depois, para o desespero da falta de dinheiro, do desperdício humano – para quase antecipar, em forma de imagens, outro problema preste a surgir: a Grande Depressão de 1929. McTeague (Gibson Gowland), perto de seus momentos finais, torna-se um mendigo; um dia já fora dentista. Inclusive, como cita seu suposto amigo Marcus (Jean Hersholt), alguém de sucesso. É a partir do encontro desses dois homens que nasce a paixão de McTeague por Trina (Zasu Pitts).

Esse triângulo amoroso, é importante salientar, tinha algo a esconder. Aparentemente, Marcus e Trina tinham um caso e o respeito não se limitava a um tratamento como irmãos; por interesse – sempre por isso –, Marcus passa a mão da jovem a McTeague, tornando-se seu futuro marido. Stroheim aproveita para não embutir mistérios à história, mas faz pensar quanto a essa condição da mulher, como mera mercadoria, já que Trina não tem muita escolha contra seu futuro marido. As imagens iniciais da relação do casal são surpreendentes e guardam um pouco da simplicidade da época. O romance em filmes mudos faz com que as pessoas imaginem mais e, à sua maneira, suportam uma carga maior quanto aos sentimentos, nem sempre transparentes. Exemplo disso é Lílian Gish em Lírio Partido, de Griffith, com uma expressão que não permite a invasão do público, praticamente não pode ser corrompida, e evita-se, assim, tentativas de entendimento. Estes rostos de atores do cinema mudo, principalmente os de mulheres sofrendo por amor ou pela falta dele, imortalizou-se num período específico da arte. Quando tais personagens começaram a falar – e isso é apenas uma abordagem para causar debate (ainda que fruto de mera impressão) – certamente ficou mais fácil desvendar suas necessidades e anseios. Um dos momentos mais célebres de Ouro e Maldição dá-se na seqüência do casamento, situação perfeita para Stroheim fazer paralelos entre a celebração religiosa e outra, ocorrendo do lado de fora: um velório, com dezenas de pessoas marchando atrás do caixão.

Trina desespera-se ao deixar sua família após o casamento e dar início assim a sua vida com McTeague. Sua despedida é uma das seqüências mais desesperadoras já construídas no cinema, o que se deve a maneira como Stroheim molda suas caricaturas em drama enquanto se tem a impressão da típica face da mulher assombrada por espíritos ou coisa parecida em um filme de horror. O pior estava por vir. Em uma incrível virada do destino, a moça provinciana ganha na loteria – um tíquete comprado no dia em que conheceu McTeague – e dá vez a sua ambição ali mesmo, no momento em que se descobre aparentemente rica. Com o dinheiro adquire algumas moedas de ouro e passa, em sua prisão particular, a adorá-las, polindo a cada noite, incessantemente, sua fortuna. Numa cena espetacular, quando não estava mais junto ao marido, lança suas moedas na cama e deita sobre elas, como se fizesse amor com o dinheiro. Naquele exato momento da história, diferente do período neoliberalista atual (com forte presença da mulher no mercado de trabalho), era muito difícil, no caso de alguém como Trina e devido ao machismo da época, conseguir sua independência. Mas esta chega por McTeague, que não agüenta mais viver na situação degradante que se encontra; recebeu uma carta dizendo que não poderia mais exercer sua profissão de dentista, pois deveria regularizar sua condição e, assim, adquirir um diploma válido para isso. Como se vê, o sucesso por meio do oportunismo exala o cheiro da resposta ao capitalismo selvagem. E pior: o ofício do filho – seja ele um bom dentista ou não – era o desejo de sua velha mãe, na época em que trabalhava em uma mina e morava num local distante. As facilidades da vida moderna nascente invadem tão rapidamente os desejos dos personagens que estes demoram a mostrar ao público que estão realmente corrompidos (ao contrário de textos atuais como o de Sangue Negro, eles dificilmente surgiriam já nesse estado).

As cenas finais, no deserto, são de uma beleza mórbida, quase uma homenagem aos mortos. De uma forma particular – por vezes muito interessante – deram forma aos inesquecíveis momentos de Clint Eastwood e Eli Wallach em Três Homens em Conflito e, ainda antes, aos momentos finais de Humphrey Bogart em O Tesouro de Sierra Madre, quando é intimado por alguns bandidos mexicanos a entregar seus pertences. McTeague e Marcus duelam não pelo ouro, primeiramente, mas por suas vidas; a água contida em um cantil é derramada depois de alguns tiros, e o ouro, como era previsível nos confins do deserto, não poderia alimentá-los. Nessa situação, não valeriam nem para mera contemplação. O pássaro de McTeague, ao ser libertado, não consegue voar; o homem, preso ao cadáver por uma algema, também sabe que, logo, será mais uma vítima do sol, do deserto, da falta d’água – e de sua ambição. Naqueles poucos momentos, Stroheim exemplificou muito bem o desejo de enriquecer do início do século. Leone levou a mensagem para outro filme, Era Uma Vez no Oeste, quando sonhar em mudar a vida das pessoas e fazer história – com a construção de uma estação de trem – poderia se reverter na perda da própria vida, exterminado junto à família. Todos esses homens sonhadores, sedentos pelo material, dificilmente sairão da cabeça das pessoas; mais complicadas serão suas absolvições.

Um comentário:

Sasha Fierce disse...

Incrível a sua analise sobre Ouro e Maldição. Porém acredito que o filme se torna um tanto repetitivo quando várias e várias vezes o espectador é obrigado a aguentar algumas imperfeições do filme. Beij

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails