O cinema depois de Pulp Fiction (Parte 1)


As falas dos personagens de Pulp Fiction – Tempos de Violência se tornaram tão famosas e lembradas pelos cinéfilos como as de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, Quanto Mais Quente Melhor e Casablanca. Ou seja, o roteiro, inteiro, é parte do imaginário de fãs de cinema do mundo todo. Seria grande exagero dizer que o cinema divide-se em antes e depois de Pulp Fiction; talvez ainda seja cedo para isso, apesar de que cada vez mais roteiros recentes banham-se na fórmula disforme e funcional de Quentin Tarantino. Se haverá ainda mais futuro para este filme, talvez seja cedo dizer, talvez não. Em virtude da era da rápida informação na qual o filme nasceu, ficou ainda mais fácil entender o porquê de seu culto, o sentido dessa busca à violência em forma de diversão que deseja demonstrar. Não beira a gratuidade como outras besteiras e filmes de máfia modernos que tenta imitá-lo. Sua originalidade ainda reside nesse tom escuro da fotografia, nesses anos 90 com cara de duas décadas antes. Cada detalhe serve para assegurar a amostra da paixão de Tarantino pelo cinema, também pela diversão barata, mas inteligente; e, como um fã de cinema, em todos os formatos, sua imaginação fluiu e o fez migrar de algumas salas fétidas, naquelas antigas sessões de filmes realizadas depois da meia-noite, para as grandes salas de exibição ao redor do mundo. O balconista de vídeo-locadora, seja como fã de cinema ou cineasta de prestigio, não tentou criar grandes mensagens como algumas de outros trabalhos consagrados que aqui homenageia. Consegue, na verdade, fazer de uma diversão um culto cinematográfico, praticamente uma viagem corriqueira de pessoas dispostas a se lembrarem o quanto era boa a gratuidade de filmes divertidos – como o próprio Tarantino divertia-se nas sessões à meia-noite com alguns clássicos filmes de zumbi. Não surge exagerado dividir o cinema em antes ou depois de 2001: Uma Odisséia no Espaço; muito menos separar o antes e o depois no caso de Cidadão Kane; e o mesmo deve ocorrer em relação à O Nascimento de uma Nação.

Muitos críticos e teóricos da sétima arte não consideram Tarantino um autor. Preferem chamá-lo de um “fazedor de filmes”, apenas, e, algumas vezes, de um jovem talentoso. Alguém, logo após o lançamento de Pulp Fiction, chegou a apontá-lo como “o aluno que nenhum professor de uma escola de cinema gostaria de ter”. Verdade ou não, a velocidade que o fez garantir espaço entre as produções classe A de Hollywood – somado a alguns milhares de rostos famosos querendo participar de alguns de seus filmes – conferiu certa maturidade a alguém aparentemente desprovida dela. Difícil explicar, pois se tratando de Tarantino é possível esperar qualquer coisa e, para o desprazer de seus fãs, a aura do autor foi desaparecendo, dando vez ao “fazedor de filmes”, como era apontado. Pulp Fiction (nome dado a revistas feitas com papel de baixa qualidade) passou a ser o grande e único trabalho de um cineasta, de um momento – isso se não for levado em conta o brilho de Cães de Aluguel – e indiretamente responsável por inaugurar um movimento. Muitos cineastas enveredaram pelo estilo deixado pelo segundo filme do diretor; em sua maioria, conseguiram trabalhos relevantes (como Guy Ritchie), ainda melhores que os filmes que Tarantino realizou após o ano 2000: as duas partes de Kill Bill e À Prova de Morte.

O desejo de contar uma boa história freqüentemente cai na mediocridade em alguns trabalhos de grandes diretores. Se for levado em conta o número de filmes lançados todo ano no mercado americano, somente uma pequena parcela tem o privilégio de conseguir contar uma ótima história, ser diversão de qualidade e, ainda sim, fazer com que esses dois fatores possibilitem a gratuidade geral da história ser deixada de lado (algo que, entre outros, Scorsese sabe fazer muito bem e que, na ocasião do lançamento de Cidade de Deus, foi um de seus defensores, dizendo claramente que o filme de Fernando Meirelles não era gratuito). Por outro lado, e diferente de alguns filmes realizados pelos considerados grandes cineastas, Pulp Fiction não tem qualquer mensagem subliminar em relação à trama; suas histórias cruzadas, sua narrativa fragmentada e as não tão claras motivações dos personagens apenas colocam ainda mais diversão em tela – sem fazer evoluir qualquer sinal de algo profundo ocorrendo em seu interior. Uma ótima discussão a partir daí se põe a questionar a validade de uma obra apenas voltada à diversão, cuja profundidade reside no próprio cinema, já que este trabalho é um mar de referências e – por que não? – de ousadias.

O ponto de partida é o diálogo de Vincent Vega (John Travolta) e Jules Winnfield (Samuel L. Jackson), diferente dos diálogos entre assassinos ou mafiosos comuns. De certa forma, Tarantino faz o que Arthur Penn fez em 1967, com Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas. No cinema, as pessoas vêem esses homens, primeiro, em momentos de prazer, num diálogo solto. São diferentes e ainda incomodam pouco se pensar em suas atitudes posteriores. Como no filme de 67, nada era mais violento que romper com a comédia no uso da violência. As pessoas no cinema se calam, não podem acreditar que os mesmos personagens que antes falavam de amor – ou mesmo de McDonald’s – passam a matar por muito pouco. Nem Vincent ou Jules tem grande carisma (como os personagens do filme de Penn) e nem mesmo o resto do elenco parece suavizar a pesada carga de situações para tantos rostos inesquecíveis. O estilo e as situações, para Tarantino, foi sua saída contra um público pronto para apontar o dedo a seus personagens, sendo os “produtos de uma arte e de uma indústria onde tudo é possível” e, ainda grave, “frutos da gratuidade do cinema moderno”. E, se assim são, então que sirvam tal gratuidade por tempo indeterminado. A sobrevivência da fita indica algo a mais que um simples trabalho gratuito; a velocidade e a língua afiada dos personagens aquece cada quadro para mais tarde não fazer deles o sustento dos dias difíceis (quando o cinema é uma saída), mas, ao contrário, um bom programa e de pura diversão. Pulp Fiction, assim como boa parte de alguns grandes filmes do período moderno, além de diversão é um trabalho sério.

Sua forma de humanizar a máfia ocorre na falta de embriaguez dos personagens quanto aos arquétipos e rituais tão comuns em filmes sobre o crime. Os bandidos não deixam de ser perigosos ou “sérios” quando conversam sobre McDonald’s – da mesma forma, o bando de homens de Cães de Aluguel sente-se à vontade para falar de Madonna e alguns de seus sucessos. Até começarem a matar, eles são reflexos de um público que, reunidos em bares ou entre amigos, preferem falar coisas do tipo a filosofar ou evocar diálogos pesados, como cenas de um filme que provavelmente viram e se esqueceram. São criminosos normais até um limite estabelecido pelo próprio roteiro, sem que os deixem menos malvados ou mais rançosos. Entre tantos fatores que culminaram nessa humanização está a relação direta deles com as coisas que muitos gostam de fazer – ou, inversamente, já fizeram. O momento em que Jules e Vincent tentam limpar o corpo de um jovem morto no banco traseiro do automóvel é também uma maneira de mostrar que as pessoas desejam limpar besteiras que freqüentemente fazem em vida. Vê-los em desespero para resolver esse problema é uma fonte de emoção tão nutritiva quanto uma seqüência de ação com muito sangue envolvido. Em muitos momentos, o texto não precisa matar seus personagens para que a emoção possa fluir; investe em diálogos ou na mudança destes. Jules, depois de escapar da morte após um tiroteio no apartamento de alguns jovens, considera sua sobrevivência como fruto de uma intervenção divina. Diz que necessita deixar a vida bandida de lado e que irá caminhar pela terra, como Caine, do seriado Kung Fu. Esse novo pregador é uma total inversão de papéis de uma sociedade conturbada e, acima de tudo, de uma arte cada vez mais adepta às misturas eloqüentes, como proposto pelo cineasta. É uma forma bruta de apresentar a dominadora cultura pop, em confronto com a ética da arte na tela – sobre o que é viável mostrar ou não – e terminando novamente na discussão sobre a já tão citada gratuidade. (Continua.)

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