O cinema depois de Pulp Fiction (Parte 2)


Lançado em 1994, Pulp Fiction foi um enorme sucesso de crítica, e trouxe, com a produção e distribuição da Miramax, uma boa bilheteria para um filme de natureza independente. (Depois de oferecer o roteiro para alguns estúdios – que o consideraram um “pouco louco demais” –, o jeito foi procurar outros caminhos. Com a entrada dos irmãos Weinstein, encantados com a inventividade do material, o projeto enfim ganhou vida.) Tarantino, que tanto procurou se espelhar em alguns mestres da sétima arte, dos realizadores de spaguetti western (Sergio Leone, por exemplo) aos pais da nouvelle vague (especialmente Godard), ao ser descartado como um autor, poderia, com uma filmografia de apelo comercial, ser apontado como um realizador em busca de boas bilheterias para seus filmes (então considerados “diferenciados”). O autor de cinema só é realmente considerado um autor, por alguns, quando permanece fora do círculo mercantil desenvolvido pela indústria, especialmente a americana. É possível fazer cinema para o grande público sem se inclinar aos exorbitantes ganhos financeiros, assim como a suas eventuais necessidades? Tem-se a impressão que isso ocorrera a Tarantino, principalmente em seus dois primeiros filmes.

Quem possui um conhecimento maior de cinema, sobretudo em relação a algumas obras antigas, deverá se deliciar com as incursões do cineasta – e cinéfilo – por esse mundo de brincadeiras, quase uma construção de sonhos, mas não uma reprise de outras coisas que já foram feitas. Sua genialidade reside em demonstrar situações e personagens conhecidos apenas como um ponto de partida; quanto às resoluções, posteriores, são elas que dão luz a seus escapismos tão geniais e inesperados. Isso pode ser demonstrado no encontro do início de Pulp Fiction com seu encerramento, quando o casal Honey Bunny (Amanda Plummer) e Pumpkin (Tim Roth) discutiam sobre a possibilidade de realizarem um roubo ao restaurante que tomavam café da manhã; no mesmo ambiente, Jules explica a Vincent os motivos sobre sua possível saída do mundo do crime. Naquela noite, Vincent deverá levar a mulher de seu chefe para dar uma volta. Mia Wallace (Uma Thurman) possui o mesmo corte de cabelo que a musa de Godard, Anna Karina, e, quando discute com o personagem de Travolta sobre como partilhar o silêncio, faz lembrar um dos momentos do belo Viver a Vida, de 1962. A seqüência da dança de twist é uma das mais lembradas e parodiadas do filme.

Outro personagem de peso e relevância é o boxeador Butch (Bruce Willis), que, assim como o Terry Malloy de Marlon Brando em Sindicato de Ladrões, foi pago para entregar sua luta. Ao contrário, ele trapaceia o poderoso Marsellus Wallace (Ving Rhames) e tem de fugir com sua esposa (interpretada pela atriz e diretora portuguesa Maria de Medeiros). As várias situações bizarras dessa história certamente fazem aflorar algo ainda mais difícil sobre as tendências do texto, assim como as de seu próprio diretor: uma espécie de sadismo pessoal, também uma maneira pouco convencional e corajosa de expor a violência em níveis inimagináveis de crueldade. O rosto de Rosanna Arquette, no momento em que Vincent deve injetar adrenalina no coração de Mia, por exemplo, é um exemplo claro da exposição desse sadismo. Tarantino, julgado como um diretor até mesmo sem controle de seus filmes atuais, cujos resultados não tem satisfeito a todos, não conseguiu mais realizar algo ao nível dessa deliciosa obra de crime e assassinato de 1994. Houve uma época em que assistir filmes sobre crime era um culto à parte em Hollywood – uma época que, além de faroestes e melodramas, era dominada também pelos filmes noir. São todos gêneros ou subgêneros esquecidos e que, muito ou pouco, retornam em fragmentos ou homenagens em Pulp Fiction. Realizar uma comédia macabra, sem qualquer divida com o público (e se existe uma dívida, talvez essa seja do cineasta), foi uma amostra inteligente de diversão, e de qualidade, assim como usar as referências a favor do resultado final – e não os batidos clichês – podem fornecer as chaves para os espectadores entrarem nessa cultura pop inerente à sociedade atual. São chaves para entrar, também, na mente de Tarantino
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