Danny Boyle: entre realidade e fantasia


Acreditar no destino é também uma possibilidade de perseguir os sonhos, acreditar em um amanhã escrito e cujos acontecimentos são inevitáveis. Seja em um aeroporto, com dezenas de guardas correndo atrás das crianças, consideradas invasoras, ou seja em cima de um trem, com a liberdade sentida na pele, pelo golpe do vento, a leveza e o destino se fundem num filme muito especial. Slumdog Millionaire é uma fábula de amor como nenhuma outra. Une em suas duas horas sinais impossíveis de ocorrer, em que as coisas parecem se encaixar, seja para o bem ou para o mal – e tudo isso numa junção de acontecimentos escritos. É impossível fugir deles. As quatro alternativas em evidência na abertura faz com que o público acredite, caso o protagonista apareça como herói, que ele seja um gênio ou um sortudo; caso fosse um vilão ou alguém com pouco caráter, ele seria um trapaceiro; numa fábula do cinema moderno, com a câmera inquieta e uma fotografia de extrema realidade, fazendo saltar aos olhos uma Índia em plena transformação, as pessoas conseguem acreditar que as coisas são como são, pois maiores explicações ou uma busca intensa pelo plausível faria com que a terna realidade ocupasse o espaço deixado para a condição mágica desse romance.

O cineasta Danny Boyle foi à Índia realizar mais que um filme – conseguiu mostrar uma sociedade seqüestrada pela ambição e exploração; são inúmeras pessoas açoitadas pelo desejo de sorte e, a cada dia, tendo de enfrentar uma nova esfera de suas próprias vidas. Não sabem o que esperar. A versão hindu do show de televisão Who Wants to be a Millionaire é uma saída para estes sonhos, em que se tornar um milionário – ou apenas sonhar ser um – seria o suficiente para reconfortá-los. Mas não se trata de mera alienação, termo tão usado no Brasil para demonstrar que as pessoas estão presas à realidade – ou falsa-realidade – da televisão. Slumdog Millionaire evidencia tudo o que há de pior nesse mundo maquilado e destinado a mostrar locais onde poucos são convidados a entrar, a sentar na cadeira, frente ao simpático apresentador, e responder as perguntas. São necessárias inteligência e sorte para se tornar um milionário. Por outro lado, quando se acredita que a vida pode estar escrita, um destino inevitável, as respostas passam por ela e seus ensinamentos. Assim, o trabalho de Boyle, com um excelente texto de Simon Beaufoy, surge menos como uma amostra de alienação coletiva e sim como um filme sobre esperança.

Quem está próximo de se tornar um milionário é Jamal Malik (Dev Patel), dono de intenções diferentes da maioria das pessoas em posição semelhante. Paralelamente ao show, é mostrado também um interrogatório. Malik, durante uma noite, sofreu torturas para confessar um crime que não cometeu. Das quatro alternativas apresentadas no início, ele definitivamente não se enquadra àquela sobre ser um trapaceiro. Logo, o público percebe sua honestidade e sua vontade de viver, assim como uma incrível persistência. Isso é a grande conquista do trabalho de Boyle, sobre como as pessoas são premiadas com suas próprias maneiras de encarar a vida e de perseguirem seus sonhos. No caso de Malik, parece ser um sonho pequeno, pois envolve o desejo de reencontrar seu grande amor. Quando consegue reencontrá-la, escorrega e lhe escapa; depois, seu irmão e companheiro revela-se também seu antagonista, violado pela sociedade. De alguma forma, o meio nem sempre justifica as atitudes de seus homens. Enquanto Malik contínua sendo levado a viver segundo alguma conduta ética, mesmo ao meio de pequenos furtos e trabalhos ilícitos para sobreviver, seu irmão Salim (interpretado na fase adulta por Madhur Mittal) desvia-se e torna-se um dos capangas de um poderoso chefe do crime de Mumbai. A vida de ambos tem como ligação a jovem Latika (Freida Pinto). Salim não entende a fixação de Malik pela garota e, ao avisá-lo que a jovem se tornou prostituta, este compra a informação de outro jovem de rua, cego, por cem dólares. Nesse mundo invadido pela criminalidade como saída comercial para a sobrevivência de muitos, é mais fácil conhecer o dinheiro americano, moeda de grande fluxo naquele momento na Índia, quando apontava como um país emergente, do que a moeda local, com a imagem do grande líder Mahatma Gandhi.

Uma das promessas de Salim a Latika inclui sua presença, todos os dias, numa estação de trem, para esperá-la. Faz lembrar uma promessa semelhante, do filme Cinema Paradiso, em que um jovem apaixonado coloca-se durante várias noites na frente da casa de sua amada. São situações, julga-se, dignas de exploração cinematográfica; quando explorada em um filme como Slumdog Millionaire, milagrosamente ela funciona e torna-se espelho de um mundo parte real parte fantasioso. Talvez nessa mistura o cineasta tenha encontrado sua grande veia artística, o que, de certa forma, vinha tentando outras vezes, como em Caiu do Céu, sobre uma criança que encontra uma mala cheia de dinheiro e não sabe o que fazer com a bolada, pois a moeda, naquele determinado momento, estava preste a ser convertida e, portanto, perderia seu valor. Da comédia, Boyle passou para este filme com maior toque de seriedade, além da possibilidade de mostrar a arquitetura da antiga e da nova Índia, local de prédios enormes e boas chances de ganhar dinheiro – mesmo que seja da maneira errada. Entre seu teor lúdico, como uma fábula, e a crítica social em vários lados de sua nação (incluindo o mundo do entretenimento), Boyle apresenta controle absoluto, em uma narrativa empolgante, edição rápida, um frenesi pronto para mesclar-se à face serena de alguns pacatos cidadãos hindus, como os velhos viajando de trem.

A velocidade na qual a história é contada faz sua realidade semelhante, em momentos, aos reflexos humanos ao meio do caos. O excesso de personagens e tipos exóticos torna o filme diferente de tudo antes realizado. Abre ao fim, inclusive, uma divertida incursão musical ao estilo de Bollywood, a indústria de cinema hindu. Partindo do jogo de perguntas e respostas, mesclado ao passado marginalizado e de poucas opções, até o duro interrogatório, a vida de Malik mostra grandes dificuldades até, enfim, lançar mão de um encerramento compensador. A vitória de Boyle, por sua vez, não está no encontro definitivo do personagem com o amor ou no dinheiro obtido – mas sim na maneira como faz o público sentir as fusões das partes de sua vida, na rápida edição, o que incrivelmente faz imaginar Malik de modo mais profundo, como se fosse alguém que as pessoas conhecem há muito tempo. Seu jeito de garoto inocente, principalmente na fase adulta, naturalmente já concede esperanças a alguém com a liberdade a seu favor. A pergunta que resta é se essa liberdade pode funcionar como antes, quando deixou sua casa após perder a mãe (num ataque brutal, um confronto de hindus e mulçumanos), numa Índia invadida e dominada pelo poder do dinheiro, pelo desejo de fazer com que o crescimento seja também produtor dos cartões postais da nação. Ironicamente, em Slumdog Millionaire o mais interessante são as pessoas, genuinamente indianas, assim como suas reações de felicidade frente à televisão, no desfecho de Who Wants to be a Millionaire.

Mundialmente conhecido por Trainspotting, Boyle não mudou sua maneira de fazer cinema, nem inverteu qualquer uma das bases lógicas de seu capricho para com a realidade ou mesmo para com os fatores lúdicos que percorrem sua carreira. Ele é o mesmo, e dessa vez deixa claro esse estilo capaz de fazer momentos duros, ao meio do caos urbano, ser parte também de sonhos interiores (muitas vezes, estes sonhos permitem que vazem, em poucos lapsos, sinais reais que machucam e, no caso de seu último filme, o drama está no interior não de uma nação, mas nas pessoas modificadas tanto quanto esta). No seu grande sucesso de crítica de 1996, um rapaz drogado entra em um vazo sanitário, devido seu delírio, e Boyle faz desse momento um mergulho ao interior do personagem; o mesmo ocorre na seqüência em que o orgasmo do rapaz é mostrado paralelamente a um jogo de futebol, na hora do gol. Mais tarde, em A Praia, Leonardo DiCaprio é uma quase reinvenção de Martin Sheen em Apocalypse Now; nesse mesmo transe, ele é parte de um videogame real. Mais exemplos mostram a inventividade da carreira de um cineasta que parece somente ter deixado essa marca em Slumdog Millionaire, pois, como ficção, seu filme assume-se facilmente; quanto às partes reais, semelhantes a um documentário sobre as transformações de um país deformado pelo crescimento sem limites, estas compõem o outro lado, de desespero e morte – tudo o que se evitou apresentar no ótimo encerramento.

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