Influências do colonialismo


O Brasil mostrado em S. Bernardo é aquele em que a época e o local conspiraram para que suas figuras fossem oprimidas e opressoras, tanto no ambiente privado quanto no público. Enquanto mulheres como Madalena (Isabel Ribeiro) sofriam caladas, por impossibilidade de revelarem um verdadeiro modo de ser, homens como Paulo Honório (Othon Bastos) praticavam a violência em público, conforme situava a versão das forças a eles conferidas. São arquétipos comuns da época e do lugar, num filme baseado numa obra de Graciliano Ramos e que dá vida a uma maneira de representar esses arquétipos quando os mesmo se transformam em uma metáfora da condição social de luta de classes, tema que ainda hoje continua a vigorar. Leon Hirszman, que ficaria mais lembrado pelos filmes sobre lutas sindicais, como o documentário ABC da Greve e, sobretudo, Eles Não Usam Black-Tie, mostra essas lutas entre lados opostos – opressor dono de terras contra oprimido dotado de consciência social – num pólo distante dos filmes que realizou no final dos anos 1970 e início dos 1980. Poucos anos estão entre tais obras, mas, por outro lado, no campo ficcional, S. Bernardo apresenta um país distante, não irreconhecível. E vale lembrar que muito dos que lutaram no ABC eram migrantes, dispostos a encontrar lugar melhor no ambiente cosmopolita e industrializado da cidade.

Honório é um homem inserido na realidade rural, como também inserido na realidade da força, da condução de um negócio com o uso da insígnia da violência. Sua maneira de colocar o mundo a seus pés – para rascunhar um fenômeno não menos louvável, do homem do meio pobre que enriquece e põe-se como dominador – é aquela que inclui a materialização das diferenças. Esse ponto, mesmo que ele próprio negue no início do filme, coloca-o como o pior rascunho do capitalismo rural. Além de esbanjar ignorância, sua essência – com contornos da obra escrita – faz avançar a opressão que recai sobre os demais, inclusive sobre sua futura esposa, mulher da cidade, estudada e dotada de certa consciência. Além dos diferentes pensamentos, há também as posições de homem e mulher num Brasil ainda machista. E, como será discutido mais à frente no texto, a imobilização da mulher mesmo quando dotada de consciência, fato tão interessante quanto os extremos que dão vez ao ciúme do marido.

S. Bernardo, pelas mãos de Hirszman e pela bela fotografia de Lauro Escorel Filho, é um exemplo de grande filme nacional após a onda do cinema novo da década anterior. O cineasta, ao aceitar adaptar a obra de Ramos, o faz não no calor do momento e dos conflitos existentes em lugares longínquos do país, mas faz disso uma saída para revelar um Brasil nada distante quando se imagina o poder dos homens dominadores, mulheres submissas e a luta por direitos iguais, ainda mais distantes, num plano profundo. O filme, dessa forma, consegue mesclar tantos papéis antes considerados comuns à complexidade da obra quando põe em cheque a verdadeira face de seu protagonista; os minutos finais, de puro olhar reflexivo, à câmera, são também – e indiferentes da primeira imagem – um ponto de mudança em todo decorrer da obra. Mas, para fazer pensar, nem tudo em S. Bernardo pode ser explicado, já que o subjetivismo do personagem é paralelo ao olhar do espectador. Nessa sutiliza, sempre com a câmera parada e com pouquíssimos movimentos, ergue-se o drama geral do filme e faz esculpido assim, na selvageria e na dependência entre pessoas inseridos no meio rural.

Lançado em 1973, em plena Ditadura Militar, o trabalho de Hirszman contempla as pessoas com a reflexão necessária dentro do drama minimalista dos personagens e nem tanto como um panorama maior, observado, por exemplo, em Black-Tie. Os pequenos dramas, reduzidos à fazenda em Viçosa, Alagoas, são de uma natureza impar, impensável em tempos em que escancarar as dores das pessoas, em cenários abarrotados de perdas e dores, faz-se tão comum na televisão brasileira. São dessas sutilezas em imagens e ação que o filme retira seus nutrientes, capazes a assegurar uma posição invejável no tempo. Outro fator decisivo é a paciência demonstrada, em planos e tomadas bem escolhidos, enquadramentos perfeitos. Não seria, portanto, exagero algum comparar essa maneira de condução com o que já fizeram alguns mestres como Yasujiro Ozu e como ainda fazem cineastas poderosos como Terrence Malick. Outro valor do filme remete ao tratamento dado ao conflito de ideais e de classe, de homem e de mulher, que pode muito bem ser confundido com a maneira em que as imagens estão posicionadas, tudo num misto de texto sintonizado com direção. A adaptação, tão poderosa quanto à levada aos cinemas em Vidas Secas (também baseada numa obra de Ramos), embute um clima de sofrimento e desespero inerentes à condição do homem como conquistador ou assassino, matador com poder ou com causa, como é o caso da morte do animal ao fim do filme de Nelson Pereira dos Santos. Há sempre uma justificativa para tais atos, mesmo que eles estejam entrelaçados à natureza bruta.

É bom lembrar que, ao contrário de Vidas Secas, S. Bernardo constrói um tempo e locais exclusivos, presos à época que o filme deseja demonstrar; já o trabalho de 1963, parte da principal trilogia do cinema novo (que conta ainda com Os Fuzis e Deus e o Diabo na Terra do Sol), mostra um Brasil real do passado e do presente, o que não estranha pensar isso ainda hoje, com dezenas de famílias migrando e fugindo da seca. Hirszman não só doa parte de um país esquecido e fundado no colonialismo opressor; faz brotar na tela um efeito dominó. Honório não quer casar por conveniência ou luxo, mas o quer devido à necessidade de ter um filho, um herdeiro. A mulher escolhida – instruída e vinda da cidade – fará nascer nele o ódio ao conhecimento, relativo ao despertar da consciência social nos empregados da fazenda. Portanto, a esposa é também um perigo, apesar de submissa e de reconhecer seu papel como mulher, praticamente uma mercadoria. O embate entre homem e mulher dá-se quase no mesmo plano. Ela nada pode fazer contra a fúria maior, também está impossibilitada de fugir. Em certo momento – capaz de abrir grande questão ao espectador –, Honório chega a expulsá-la das terras. Por que ela não vai embora? Certamente porque sua posição de mulher esteja ainda mais enraizada que a possibilidade de viver livremente e, conhecedora de idéias socialistas, a maneira de ver o mundo também pode estar ligada à maneira cristã de manejar os laços de união impossíveis de serem desfeitos.

Quanto a Honório, a fonte do drama e reflexão de S. Bernardo, sua religiosidade talvez não esteja à frente da sua vontade de conquistador nato. O cinema já prestou o serviço de demonstrar inúmeros homens como ele: assassinos protegidos pelo poder, pela promessa de conquista e pela razão de ser, o que é, sim, uma maneira nata de dizer aos outros, considerados fracos, que o estado natural concede a certas pessoas a possibilidade de mandar e, a outras, a de obedecer. O passo seguinte no texto é elevar o ciúme do protagonista, resultado do conflito ideológico de homem e mulher. Honório não consegue entender a tamanha necessidade de socialização da esposa, de ajudar e ensinar os outros. Trouxe, ao seio de suas terras, a questão da tolerância como antes ninguém observara, pois reside no coração delas, ao lado do proprietário. O texto, por conseqüência destas escolhas – até se lançar à tragédia final –, aniquila a aceitação como fruto do amor entre o casal. Isso nunca acontece; nada está à frente de São Bernardo. O homem, ainda, tem a capacidade de pensar sobre si próprio, de reconhecer ser a peça perdida num país de mudanças, de levantes e consciências não tão distantes daquelas presentes em outras partes do mundo. O conflito entre o dono da terra e o professor, aqui, é também um conflito que dá vez a algo muito maior. Diferente em estrutura se comparado com Black-Tie, esse filme de Hirszman tem como tragédia a morte da mulher inserida na compreensão do homem, afinal ele sabe de suas maldades e fraquezas. No filme de 1981, as escolhas são mais bem entendidas e interpretadas; num mundo mais democrático há mais opções, o que possibilita a fuga do filho, para o desespero das idéias socialistas dos pais. São obras sobre conflitos intimamente ligados aos homens comuns, que, para a amostragem da crítica na tela grande, usam a família como fonte da falta de união.

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