Um julgamento para Nixon


A relação entre o apresentador e entrevistador de televisão David Frost com o então ex-presidente Richard Nixon pode, historicamente, estar fadada ao pouco tempo em que ambos dividiram olhares, favores e, como também, um combate. Material interessante para um filme, essa relação necessita também uma saída para que ambos justifiquem seus laços, e o texto, de Peter Morgan, responsável pela peça que foi levada à Broadway (e pelo sucesso A Rainha), cumpre o favor de dar imaginação a tal união, como se fossem, apresentador e político, pessoas de laços estreitos; no íntimo, interligados por algo pouco deixado às claras. O cinema, como se vê, nem sempre absorve as características políticas e sociais de um momento como um pleno plano dos fatos, assim deixando algumas características de ambos personagens (também figuras reais) para resumir uma relação entre estes, potencializada ao máximo. O público, por conseqüência, percebe que tal ligação – assim como o estreitamento das relações – faz-se necessária no decorrer de Frost/Nixon e que o filme, dirigido por Ron Howard, está amplamente enraizado em como estas pessoas naturalmente se completam.

Ainda assim, é um belo exercício de embate político – ainda mais, uma união impensável de um jovem, engomado e rico apresentador britânico com um velho político desmoralizado. Ambos demonstram mútua dependência: Nixon (Frank Langella) sente que ainda pode voltar à carreira política e, por isso, a televisão pode servir como um pedido de desculpas; e Frost (Michael Sheen), aparentemente ingênuo para o tubarão preste a engoli-lo, pode se firmar como alguém de carreira séria, longe daquela face que, nos primeiros minutos do filme, deixa clara: o belo e queridinho das platéias em busca de diversão fácil. Essa relação, por sua vez, é a fonte dos desejos de Morgan, o que seria capaz – e foi – de atrair dezenas de diretores “sérios” para a versão cinematográfica. Howard, mais uma vez ao lado de Brian Grazer, seu fiel produtor, consegue um trabalho memorável, com tal equilíbrio atípico dos tempos de Apollo 13. Mesmo tendo ganhado o Oscar por Uma Mente Brilhante, é a maneira desprovida de emoções fáceis que faz dele um diretor competente e, sobretudo, seus melhores filmes revelam-se em equilíbrio quando apresentam relações entre homens, seus afrontes burocráticos e um certo desespero implícito – o que pode ser visto em Apollo 13, mas nem tanto em Uma Mente Brilhante, no qual recorre-se ao drama familiar para apresentar a dor dos personagens e, ainda mais, a batalha interna de John Nash.

Morgan aproveita também outra situação, talvez essa o prato especial do show. A experiência de Nixon seria um fator decisivo, como ele mesmo acreditava, para pedir desculpas a sua nação, pois nada temia em relação ao jovem apresentador. Frost, por sua vez, achou que ali residia uma maneira franca de embarcar no mercado americano. O que estranha tanto – ou mesmo pode ter sido ocultado pelo texto – é o porquê de certa distância de Nixon para com a mídia. Em determinado ponto, ao receber a notícia de que Frost gostaria de entrevistá-lo, Nixon sente-se atraído pela oferta, pois outro produtor oferecera menos que o rapaz inglês. Frost/Nixon não tem a audácia de apresentar claramente a renúncia do presidente, que, nesse momento, é observado apenas de costas; são as câmeras e as imagens de sua despedida que emitem o efeito documental e austero desejado (mesmo recurso utilizado em A Rainha para apresentar a morte da princesa Diana). O ritmo é exemplar, sempre dando vez a ambos personagens e sem que um deles deixe o posto principal e caia à coadjuvante. Essa batalha entre diferentes gerações, idéias e desejos – apesar de uma busca de notoriedade dos dois lados – é a forma de Morgan deixar às claras a maneira como seu roteiro se faz existir e, sempre, como pode ser sim um veículo inteligente e atrativo.

Frost/Nixon tem início nos exatos momentos em que Todos os Homens do Presidente chega ao seu fim, ou seja, a renúncia do presidente. Enquanto o filme de Alan J. Pakula centra-se nas investigações que levaram o presidente ao tal ato, o trabalho de Howard, mais de trinta anos depois do Watergate, busca traçar a face intima de Nixon em seus momentos reclusos. Claro que o filme não é só sobre isso e o que interessa são as relações já descritas nos outros parágrafos. O que se obtêm dessa junção de Howard e Morgan é a saturação tardia daquilo que todos já sabiam e que, muitas vezes, ainda duvidavam: se Nixon era ou não alguém de moral duvidosa. A saturação citada deve-se a algumas suposições há tanto tempo guardadas e que aqui, acredita-se, tenham sido mostradas de maneira fiel, como os pequenos e dolorosos ataques a Frost pouco antes de começar as gravações da entrevista (isso, claro, declarava-se uma maneira do presidente desviar a atenção do entrevistador, como também criar certo nervosismo). O filme aproveita esses detalhes, não deixa escapar nada dessa relação minimizada em alguns encontros e potencializada pelo texto.

O entrevistador, quando teve a idéia de se encontrar com o presidente, foi logo a América na intenção de conseguir financiamento com algumas cadeias televisivas. Outro fato curioso: as grandes emissoras não tinham interesse em bancar a entrevista, fato evidenciado, principalmente, porque Frost não tinha o tipo adequado para o trabalho (ou apenas não era levado a sério). Não desistiu. Continuou sua obsessiva cruzada para levar a público o encontro com o ex-líder americano. Em certo momento, teve de pagar algumas despesas com dinheiro próprio e, para piorar, descobriu na América ter sido despedido das outras cadeias televisivas nas quais trabalhava. A chance de entrevistar Nixon, então, tornou-se também um risco. Frost poderia recuperar sua credibilidade, assim como poderia também acabar de perder o que lhe restava. Contratou dois investigadores que conhecem a fundo a carreira política do ex-presidente; um deles, interpretado por Sam Rockwell, chega a dizer para Frost que aquela seria a chance de dar a Nixon “o julgamento que ele nunca teve”. A entrevista, como se pode perceber, ganhou outros contornos, principalmente depois que Nixon, um pouco embriagado, ligou para Frost e disse que tudo se tratava de uma batalha entre ambos. Morgan deixa exposta essa maneira republicana de encarar até mesmo os menores opositores – ou os opositores silenciosos, como é o caso aqui, já que, como o próprio Nixon diz ao fim, Frost pode estar mais ligado ao gosto de lidar com multidões do que ele próprio e que, assim, Frost seria um político ainda mais completo.

A mídia – se for levado em conta algumas amostras desse ótimo filme – nunca mostra às pessoas quem realmente são as figuras apresentadas na tela da televisão. Depois que os políticos descobriram na propaganda uma forma de se perpetuar no poder, qualquer oportunidade de falar à mídia tornou-se também uma oportunidade a se privilegiar. Por isso – além de ter cobrado 600 mil dólares – Nixon precisa de Frost tanto quanto o apresentador precisa dele. A dependência dessa relação, como exemplo, tem sido reverenciada em toda história do último século, quando as pessoas acreditavam conhecer seus líderes. É com filmes como Frost/Nixon, investindo nos detalhes de ambas vidas mostradas, que é possível, ao mínimo, ver algo de real, mesmo que em poucos momentos. Em um texto sobre o filme Nixon, de Oliver Stone, Bob Woodward (um dos autores do livro Todos os Homens do Presidente, também parte primordial do pilar da deflagração do caso Watergate) abriu a seguinte questão: “Os espectadores do futuro, que jamais conviveram com o verdadeiro Nixon, poderão perguntar: como é que um homem desses conseguiu ser presidente? Mesmo nós, que atravessamos a era Nixon, fazemos essa pergunta”. A questão levantada por Woodward, como se vê, apenas reforça a vitalidade do filme de Howard. Ainda no início de seu texto, o escritor e repórter lembra de uma imagem presa na mente da população norte-americana da época. Trata-se da despedida de Nixon, antes de entrar no helicóptero e deixar a Casa Branca. Se o texto de Morgan estiver certo, Frost, nesse exato momento, estava assistindo a despedida em outra parte do globo. É como se os dois, político e entrevistador, por meio da tela da televisão, estivessem trocando olhares.

De http://cinemasemtempo.blogspot.com/

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