Onde reside a Casablanca dos refugiados gregos?


A parte da história grega mostrada em A Viagem dos Comediantes não tem a ver, sob o olhar político e social, somente com a situação das pessoas daquele país. O momento era de grande tenção e mudanças em boa parte dos países europeus e próximos deles, assim como na parte oriental do planeta. A Primeira Guerra Mundial semeou o ódio que daria vez às demonstrações de força da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. E a Grécia, um país relativamente pequeno entre a Itália e a Turquia, banhada pelas águas do Mar Mediterrâneo, foi facilmente dominada pelos nazistas nesses anos de conflitos. Conseqüentemente, produziu milhares de refugiados – muitos surgidos especialmente depois do fim dos conflitos – e pessoas sem casas, perdidas numa nação gelada em sua região norte (pouco mostrada) e quente no sul, onde a geografia quase sempre é casada às lendas da mitologia.

Para contar os dramas da história grega, o cineasta Theodoros Angelopoulos traz para o centro das tenções uma trupe itinerante de artistas. Claro que, em determinado ponto, as viagens são necessárias, não se limitam às relações de trabalho e nem aos locais de apresentações, por exemplo. A passagem do homem pelos mais distintos e inacreditáveis redutos de lixo, ou mesmo de pouca aceitação, está intimamente ligado com seu estado de sobrevivência a qualquer custo. O lixo, ou mesmo a escória atribuída dessa forma, mantém-se em aberta conformidade com o medo da morte, a submissão ao Estado dominador, a perseguição do conflito e a busca pela sobrevivência. Os atores de A Viagem dos Comediantes centram seus problemas nesse ambiente sem maiores expectativas. Interpretam, quando em seus momentos íntimos, parte de uma tragédia humana impossível de se desligar das pessoas quando na verdade, e apenas, servem para provar seus estados de pura graça – assim, para isso, o cineasta despeja em cima das dores alheias sua comédia de observação à distância, como em um quase cinema-painel. É como se casasse a quietude e serenidade de alguns personagens de Ozu à maneira descontraída e engraçada de conter a tragédia dos personagens dos Taviani. Mas é bom entender que, depois do mestre japonês e antes da explosão dos maravilhosos trabalhos dos irmãos italianos, o cinema mundial ganhava vitalidade com a amostra da arte de Angelopoulos, na passagem da década de 1960 para os frutíferos anos 70.

Pequenas composições cômicas são entrelaçadas às maneiras simplistas de encarar a tragédia, como a fome e a morte, além de atento aos conflitos. A família em meio à trupe de artistas se mantém unida pela força que juntos representam. Uma das filhas, Elektra (Eva Kotamanidou), está representando um papel o qual não deseja. Mesmo sabendo que seu pai (Stratos Pahis) está sendo traído pela mãe (Aliki Georgouli), ela cala-se, sofre ao se dar conta do fato, chora pelos cantos dos hotéis imundos em que a trupe instala-se. São essas pequenas dores as responsáveis por fazer do conflito uma parte externa nas convenções do roteiro, e, assim, a dor humana inerente a qualquer época é também um dos suportes para aproximar os personagens do público. Muitas das situações são difíceis de descrever. (A direção de Angelopoulos, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que faz figurar a distância entre as pessoas e os personagens, mostrados muitas vezes em grupo, pregando o processo coletivo do trabalho e da própria existência, também evolui para uma possível aproximação dessas “formigas” que não param de se mover e construir, em seus dramas relacionados à normalidade cotidiana.) Por sua vez, esse coletivismo de situações quase sempre proporciona saídas à unicidade do homem como foco dentre outras pessoas. Cena chave para descrever esse raciocínio é aquela em que um jovem rapaz, ao não aceitar ver sua mãe casando com um oficial americano, arrasta consigo a tolha da mesa da celebração; a câmera acompanha-o rumo ao horizonte, quando se rende à beleza única do reflexo do sol na água, ao fundo. Tais momentos, de tão nostálgicos, podem ser comparados com alguns do encerramento de Amarcord, de Fellini (ambos filmes tratam de lembranças, de um período em que a guerra, para minimizar a dor, fora mesclada a comédia de um cinema de autor, tanto para o grego quanto para o italiano).

Antes de ser ocupada pelos homens de Hitler, a Grécia sofria com a ditadura de Metaxas e, com o final da Segunda Guerra, passou, mais tarde, às mãos do general Papagos. Como bem o filme mostra, a transição pós-guerra deu-se pelas forças de uma unidade militar comunista contra o poder que se centralizava, com flertes à monarquia, tendo fim trágico para os homens de barbas longas, escondidos nas montanhas. Entre eles estava Orestes (Petros Zarkadis), que, como seu nome sugere, remete à tragédia grega Oréstia, além de outros a seu lado. Pode se dizer que Angelopoulos estava interessado em um filme sobre as lendas mitológicas, mas, no centro das discussões de seu texto, reside, sim, as dificuldades de um tempo de mudanças; por força maior, as pessoas pagam com as vidas e com as fugas forçadas, tornando-se naturalmente frutos desse desespero comum em tempos de guerra. Sendo atores ambulantes, naturalmente inseridos em viagens ao redor da Grécia, qual a profundidade do drama quando se pensa em pessoas que sempre estão fugindo de algo? Essa fuga, por sua vez, nada tem a ver com a condição de refugiados; emite, algumas vezes, o sinal de pessoas assistindo a tragédia viva de um país envolvido em problemas além de suas fronteiras. Menos metafórico que O Sétimo Selo, com um pequeno grupo de atores que assiste tragédias ainda mais antigas (a peste negra e a volta dos cavaleiros das cruzadas), o trabalho desse cineasta grego não se limita a falar de lendas quando, por sua vez, a maior intensidade jaz na realidade.

Seqüência que rompe com a condição dos personagens como meros observadores é aquela em que o pai de Elektra é entregue aos nazistas; fuzilado, suas últimas palavras pertencem certamente a uma poesia contida contra os mortos na guerra. A saída dos alemães é simbolizada por uma bela seqüência em que, em meio às construções antigas, o povo comemora e joga ao mar a bandeira com o símbolo do partido de Hitler. A guerra civil, após a ocupação, significava também uma rachadura. Parte da população – na verdade, uma grande parte – não conseguia enxergar na presença americana e inglesa algo de bom, nem mesmo na estruturação da nação em uma pseudodemocracia com a ajuda desse imperialismo externo. Seria com a ajuda dos vencedores do lado capitalista que a Grécia concederia a sua população uma verdadeira identidade? Os refugiados, nessa altura, sem lado a ficar, já haviam perdido parte de suas almas e de qualquer ideologia que antes, ao menos, pregava a não-violência. Durante um breve período da história, o socialismo foi uma opção para se pregar paz, principalmente nos momentos que antecederam a revolução de 1917 em vários lugares do mundo (inclusive nos Estados Unidos, com uma campanha contra a entrada dos soldados na guerra então em curso). Muitos dos eventos mostrados em A Viagem dos Comediantes reforçam os desencontros entre ideologias e ações, sendo que, em determinado ponto, ninguém esta imune ao conflito, seja um soldado, sua irmã, ou, na maioria, refugiados.

Angelopoulos registrou uma paisagem grega pouco conhecida: aquela onde o frio é constante, ao norte. Essa frieza do ambiente soma à sua estética de dor, ao mesmo tempo em que entra em conflito com a comédia das pequenas situações. Entre alguns momentos hilários está a garota que canta a um homem em troca de uma garrafa de vinho; também o soldado que se despi a Elektra e que, logo em seguida, é ignorado; vale lembrar também do belo momento em que a trupe é abordada por um grupo de soldados ingleses e são obrigados a representar a peça Golfo, a Pastora. Ao fundo da encenação, um tecido com parte de uma paisagem antiga, pintada; ovelhas, em uma Grécia remota, iam ao encontro do rio para beber água. Com exceção dos conflitos e de alguns prédios maiores, o cenário desenhado e a realidade parecem não ter grandes diferenças. A conservação da velha arquitetura das casas e vilarejos inteiros reserva ao filme de Angelopoulos um clima real e nostálgico poucas vezes registrados no cinema moderno. O primeiro filme de Fellini, Mulheres e Luzes, também mostrava a melancólica caminhada de um grupo de artistas itinerantes, assim como suas desilusões e romances. É um filme que, como A Viagem dos Comediantes, ultrapassa as maneiras de filmar e representar típicas do cinema clássico; busca nutrientes no neo-realismo da década de 1940.

A seqüência em que partidários comunistas cantam e dançam, em confronto com os fascistas em outra mesa do salão de baile, é uma referência clara à Casablanca, que, como aqui, a guerra invade a vida das pessoas que não pediram ou optaram por ela; são refugiados com uma saída para se salvarem: conseguir um passaporte em Casablanca, no Marrocos, local propício para a tentativa de fuga. Onde reside a Casablanca dos refugiados gregos?

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