A vida e a morte de Augusto Matraga


O cinema nacional demonstrava originalidade única em meados dos anos 60. Não eram somente os filmes intimamente ligados ao movimento cinema novo – como Os Fuzis, Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol (a emblemática trilogia do momento) – as grandes novidades da época em relação ao cenário nacional – ou mesmo ao renascido cinema de autor. Outros cineastas de grande porte, fora da conhecida estética da fome, como Roberto Farias, Luis Sérgio Person e Roberto Santos, acompanhavam as novas possibilidades de um maneira muito particular de fazer cinema. O resultado aponta para o período mais fértil do cinema nacional; foi um momento, também, de ótima produção dos cineastas considerados filhos – ou pais – do cinema novo (como Glauber Rocha) e daqueles que produziam com sua própria marca, deflagrando, em igualdade, os problemas de uma nação que acabara de sofrer um golpe militar. E não é só: a própria maneira de fazer cinema da época – que colhia um pouco do neo-realismo e do então novo movimento nouvelle vague – conseguiu gerar uma produção em série magnífica e, ainda, com uma marca estritamente brasileira.

Desse período nasce A Hora e a Vez de Augusto Matraga, baseado numa obra de João Guimarães Rosa e a partir de um texto de Gianfrancesco Guarnieri, um trabalho inesquecível sobre os estágios da vida de um homem, como se fosse a própria síntese dos problemas humanos e de suas transgressões. O que se vê é, portanto, as necessárias dores e mudanças para que se justifique, no conflito corporal, a própria existência. E, num momento particular, Matraga (interpretado belamente por Leonardo Villar) quer mais que simplesmente sofrer para se sentir vivo e digno de cessar seus pecados – ele quer também provar algo, na hora e na vez que julga certo, como se tudo dependesse de estágios religiosos. Aqui, o homem não tem mais controle sobre sua vida; quando tem, deve ao menos reconhecer sua mera impotência carnal, sua dependência de algo maior, e acredita estar imune ao mal humano. Com todas as amostras religiosas possíveis, o protagonista é como alguém crucificado de volta à vida por meio de uma intervenção divina. A estética de A Hora e a Vez de Augusto Matraga mostra a capacidade de diferenciação – ou apenas pouca diferença – em relação aos filmes puramente pertencentes ao cinema novo. Não se parece com o produto nacional de grande marca naquele momento, e talvez por isso esteja um pouco esquecido. Realizado em locações distantes do sertão explorado no movimento nascido um ano antes de seu lançamento, o longa de Santos provoca reações diversas nas pessoas. Isso se deve ao largo contraste entre os dois Matragas, em uma divisão forçada, necessária e ainda religiosa quando se imagina ele morto, ao contrário do que o destino, como acredita, reservou-lhe.

Como toda obra sobre redenção, o trabalho de Santos poderia ter perdido a noção do drama enquanto procurava equilibrar as forças e reações de seu personagem. Isso, na certeza, poderia ter sido perdido – e colocado o filme em problemas – se não houvesse um controle tão competente do texto; o principal, também, é conter as dores e as revoltas de um homem em divida com Deus. Sua hora e vez estão à espreita, como imagina o espectador com um mínimo de percepção. Morrer à maneira antiga não faz mais parte do modo como Matraga enxerga o mundo a sua volta; ao aceitar a religião, escolhe morrer como um servo desta, na procura de um significado. E, mesmo em tantas atribuições e amostras religiosas, o filme condensa-se a partir de uma mistura que, para entender o futuro do protagonista – assim como sua escolha final –, é ainda mais necessário entender seu passado, não tão obstante à religiosidade (apesar desta, em seu caminho rumo à redenção, ocupar papel menos importante). O lado existencial do protagonista está em conexão com seus conflitos internos, para com a natureza (numa seqüência em que golpeia a mata) e enquanto doma um cavalo. Nas relações com as pessoas, é a voz do instinto de Matraga que o conduz, sua vontade de voltar a ser o homem de antes – ou, ainda, a parte interessante do seu antigo eu.

Na abertura, o roteiro apresenta situações por momentos confusas, uma total anarquia e descontrole de homens numa cidade resumida em pequenas casas, na tradicional quermesse e na previsível igreja. (Talvez a figura religiosa concreta, nessas construções características de cidades do interior, seja o único local que exige certo respeito e que, na medida, o recebe de volta.) Matraga, a qualquer sinal de perigo, logo convoca seus homens, tão mal vestidos e desajeitados quanto ele próprio após uma noite de bebida e mulheres. São homens sem qualquer ética, violados pelo instinto da posse a qualquer preço, aprendendo com o chefe para dali extraírem a fatia recompensadora. Nem é necessário citar a traição para com o protagonista, num momento de dupla mudança. Além de perder seus homens para um poderoso e influente major da cidade, Matraga perde também a esposa e a filha, levadas, acredita-se, para um lugar melhor para se viver. O público não descorda dessas escolhas tratando-se das atitudes e maneira de ser do protagonista. Apenas mede, e com razão, o que seria mais viável – e saudável – numa terra sem lei como aquela. Do lado de Matraga está seu fiel escudeiro Quim, conhecido como o “Recadeiro” (Flávio Migliaccio), e, como seu próprio apelido diz, aquele com a velocidade para levar a mensagem de uma vila para outra de forma rápida. Depois de avisar Matraga sobre a traição de sua esposa e de seus jagunços, espera pelo pior. Seu patrão decide fazer justiça e ir atrás dos homens que o traíram, assim como de sua mulher, sempre impassível em relação às péssimas atitudes do antigo marido. Recebido de forma brusca, numa cilada inesperada, acaba tendo de passear como um cadáver nas mãos de seus antigos e infiéis capangas.

A história a qual Matraga está enraizado faz parte do imaginário de escritores que antes já escreveram sobre redenção. O cinema mostrou milhares de exemplos parecidos – do homem intimado à mudança pelas vias da ética, da religião, ou mesmo da procura pela estabilização familiar e pelo descanso (como no faroeste moderno de Clint Eastwood Os Imperdoáveis). Mas nessas histórias inglórias o passado tenta cobrar uma antiga dívida, que pode ser interpretada também como a consciência unida ao desejo – ou melhor: quando à espera de mudanças, pelo fim do enfado. Matraga esperou e relutou contra seu desejo. O texto, de forma brilhante, coloca-o novamente contra o mundo; para seu desejo, o de aceitar a conduta religiosa (sua hora e sua vez), também poderá terminar seus dias com um significado a levar. Contra os impasses do mundo violento em que nasce em tela e depois se desprende, mantém a fé como uma aliada. Para quem prefere enxergar o mundo como ele, repleto de significados, essa fé pode estar aliada ao desejo, um guia para o mal (demonstrado no convite para se integrar a um grupo de pistoleiros liderados por Joãozinho Bem Bem, interpretado por Joffre Soares). Enquanto volta a manter contato com a arma de fogo, ganha respeito de homens marcados como gados e, portanto, semelhantes.

Outro filme que busca direcionar o passado de um homem contra seu estado equilibrado no presente é A Missão. O caçador sem escrúpulos vivido por Robert De Niro converte-se em cristão após assassinar o próprio irmão; junto a um grupo de padres jesuítas, vai ao encontro do primitivismo não para um novo estágio de sua existência – talvez o ceticismo –, mas para ratificar uma informação anterior e que tem a ver com a finalidade das pessoas na vida das outras. A procura de Matraga por “sua hora e sua vez” não significa dar vida a uma condição universal de bondade e de necessária amostra dos bons frutos do caminho da fé. O que faz a obra enriquecer é que ele encontrou “sua hora e sua vez” quando teve a oportunidade de demonstrar ser um novo homem, sem medo de causar dor por uma causa maior. Aprendeu como dosar seus dois homens em conflito, vivos no espírito de um total sofredor. Ainda que sedento por amostras divinas, o texto faz as coisas funcionarem de qualquer forma, independente da maneira como se explica a vida e a morte de Augusto Matraga. Sua simplicidade e raiva tão espontâneas dispensam lágrimas como as do assassino arrependido do filme de Roland Joffé.

de http://cinemasemtempo.blogspot.com/

Nenhum comentário:

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails