Vermelhos


Algumas pessoas têm a sorte de estar em lugares privilegiados em determinado ponto da história. Devido a isso, passam a fazer parte dessa história, tornam-se – mesmo em menor escala – lendas nos meios os quais reverenciavam. Nos anos 30, por exemplo, com a ascensão do Partido Comunista Americano, a figura do revolucionário americano John Reed ecoou forte entre os novos e os velhos engajados. Alguns, com sorte, talvez tenham conhecido Reed.

Warren Beatty lutou para levar Reds às telas do cinema. Só de pensar em um filme com um tema genuinamente comunista – sobre os comunistas americanos do início do século XX – faria com que qualquer estúdio desistisse da empreitada. Mas o sucesso de Beatty na década de 70, em filmes sempre lembrados como Shampoo (dirigido por Hal Ashby) e O Céu Pode Esperar (seu primeiro trabalho como diretor), deram-lhe o direito de encarar uma produção americana, no berço do capitalismo mundial, carregada com o tema comunismo em todos as páginas do roteiro. A vida de Reed está entrelaçada à aptidão pelo modelo igualitário, assim como a luta ao lado de anarquistas (como Emma Goldman) e a serviço, também, das causas feministas (para isso, o filme tem a forte figura de Louise Bryant). O paradoxo de uma produção americana sobre o comunismo espelhado no modelo soviético, justamente em uma época em que a Guerra Fria encontrava-se em curso, serve para demonstrar um lado positivo da democracia artística vigente no cinema daquele momento – somada ao peso do astro Beatty e do apelo romântico do filme, como Dr. Jivago já havia mostrado ser um fator primordial na década de 60, deixando a Revolução Russa como pano de fundo. O diretor contido da comédia sobre anjos de 1978 deu vez a um artista possivelmente precoce; nem por isso, menos interessante ou desprovido da leveza necessária para tratar de um tema considerado pesado.

Política no cinema nem sempre é sinal de boa bilheteria. As histórias de amor compõem um pano interessante e atrativo, para driblar o engajamento e o pouco distúrbio ainda vivo sobre o medo dos comunistas por parte de uma conservadora fatia da sociedade americana da época (aquela que certamente votou em Nixon e apoiou Ronald Reagan, o então presidente dos Estados Unidos quando o filme de Beatty estreou). Reds casa a fluência do comunismo dentro da vida americana e ainda vai além. Até o final de sua primeira metade, explora a questão da liberação sexual e dos problemas envolvendo o apoio ao feminismo. Nasce a figura brilhante – muitas vezes em dúvida – de Bryant, numa interpretação sob medida de Diane Keaton. O diretor Beatty sabe como explorar suas reações, a maneira como expõe seu olhar de puro desejo sexual ao parceiro; ao mesmo tempo, é uma dominadora livre fora de sua época, alguém maluca o suficiente encampar um discurso de total independência num período em que os homens, em sua maioria, lotavam seleiros e salas escuras para proliferar Marx e o valor do trabalhador. Em sua primeira aparição, Bryant mostra alguns quadros a possíveis compradores numa galeria de arte; uma mulher espanta-se ao ver a futura esposa de Reed despida para uma pintura. Nasce, ali, a comunhão do filme com uma vertente forte a ser explorada. Os comunistas americanos, diferentes de outras alas, além de intelectuais, conviviam com a liberalidade como importante fator em suas vidas.

Reed, ao voltar de uma de suas viagens ao exterior, fica encabulado ao descobrir que sua então esposa teve um caso de amor com um de seus amigos, o famoso poeta Eugene O’Neill (Jack Nicholson). Como num pacto liberal, tentam conviver com essas liberdades casuais. Uma das “testemunhas” (alguns senhores e senhoras que supostamente conheceram o casal) chega a apontar um relacionamento a três. O trabalho de Beatty, por sua vez, suaviza a presença de mais amantes na vida de Bryant, assim como não procura assumir a presença de uma vida dentre à "liberdade total". Reed poderia aceitar o relacionamento da companheira com o amigo; ela, por sua vez, parecia não suportar a dor dessa suposta aceitação dele, como se estivesse à frente dela, detalhando qual as condutas seriam aceitáveis ou não. O filme apenas transparece levemente tal discurso, não aprofunda em mais do que algumas brigas – com ótimos diálogos e duelos de atuação – e nem prepara um terreno para uma total convivência pacífica. Essa é uma diferença crucial em relação ao outro famoso épico sobre a Revolução Russa: Dr. Jivago. Enquanto o belo filme de David Lean expõe as relações amorosas do médico interpretado por Omar Sharif como algo perigoso, até mesmo irresponsável, o filme de Beatty aceita-a e faz dela um ponto de diferença em um filme sobre revolução. Esta não ocorre somente nas ruas; nem sequer é necessário dar a volta ao mundo para senti-la ou fazer dela usufruto. A revolução é também sexual, como se as pessoas precisassem aceitá-las primeiro, mudar esse plano ideológico, para depois expor seus pensamentos e sua real conduta à sociedade. Lideres conservadores vem comandando a América por muitas décadas, mergulhados na religião, como o foco central para suas realizações e conseqüências. Há Deus em todos os atos e escolhas. O que Reds mostra é que a cada local do mundo onde os repórteres colocam seus pés, a figura divina perde espaço para uma crua realidade. Uma cena emocionante mostra um debate entre Bryant e um poderoso senador americano. Este pergunta se ela, por acaso, acredita em Deus. Suas respostas são coniventes como um pensamento ateu – apesar dela não assumir isso – e, ainda mais, evidenciam a afirmação da razão ao lado das escolhas soviéticas.

Lançado em 1981, Reds foi um dos filmes mais interessantes de seu ano. Entre os duelos do par romântico central e a aprendizagem e as experiências com os eventos de 1917, o trabalho de Beatty expõe uma realização corajosa e pouco adaptada ao grande público. Constrói uma visão dos anos 80 sobre os eventos mais marcantes do início do século; ainda mais, colabora para mostrar a presença comunista e anarquista contra a continuidade da Primeira Guerra Mundial. Bryant, na primeira parte do filme, pode ter mais peso que Reed; já na segunda parte, o galã Beatty assume a posição do homem corajoso em busca das mudanças ocorridas no mundo. O que ele encontra, em devida maneira, é a frustração também obtida por Bryant. Se a procura por uma sociedade perfeita fez dele um sofredor, pois passa a descobrir várias anomalias nas entidades comunistas que apoiava (inclusive chegam a mudar um de seus discursos sem ele saber), Bryant não consegue fugir de sua condição de mulher apaixonada, capaz de percorrer continentes atrás do homem que ama. À sua maneira, isso poderia ser considerado uma regressão. Termina como uma enfermeira em um hospital soviético, ao lado de Reed, preso à cama, sofrendo com apenas um rim e praticamente morto após meses de debates em salas fechadas e pressões de líderes tão obcecados pela causa quanto ele.

Incomoda a maneira como Beatty dirige a si próprio, fazendo, ora ou outra, seu personagem alguém inseguro demais para o revolucionário que representa. Mas, na contramão de tal observação, está a descontração a favor da realidade da vida na liberal Greenwich Village da década de 10. Para Bryant, aquele local foi uma bela maneira dela encontrar o que procurou por muito tempo: uma vida sem os excessos dos julgamentos masculinos. O roteiro, para o casal, serve de amostra dessa relação enquanto tenta se adentrar, aos poucos, nas questões comunistas sempre em pauta nas reuniões de amigos e intelectuais. É raro ver alguém como Reed, de jornalista intelectual a revolucionário pragmático, autor do importante Dez Dias que Abalaram o Mundo. Mesmo tentando ser fiel aos fatos, Reds faz o público receber, logo em abertura, motivos para não acreditar em tudo. “Era em 1918 ou 1917? Eu não posso lembrar agora”, diz a voz de uma das testemunhas. “Eu estou começando a esquecer todas as pessoas que eu costumo conhecer, vê”, alega outra.

Essas testemunhas, pessoas de idade avançada que teriam convivido com as figuras reais mostradas no filme, são uma ótima amostra de veracidade – ou tentativa dela – por parte do material. Beatty funde documentário e realidade, e quando um dos entrevistados começa a falar do personagem central, o público logo vê a única imagem de seu envolvimento nos conflitos mexicanos com tropas de Pancho Villa. Repórter que soube muito bem aproveitar as mudanças de seu tempo, até sua morte ainda jovem, Reed era, além de um grande escritor, alguém pouco contente em se manter calado. Uma seqüência demasiada pesada, esquemática, mostra suas facetas na União Soviética, quando sobe em um palco e diz ao povo a importância de se manter em greve, pois aquilo ecoaria como um exemplo à América. O rosto de Bryant – nas várias faces de Keaton para mostrar o desejo sexual interminável de sua personagem – está presente mais uma vez. Reds é um filme sobre revoluções, sobre necessidades humanas, tão dependente do contato entre esses liberais e parceiros sexuais quanto Dr. Jivago mostrava-se dependente de seu polimento, de sua frieza e de sua maneira de representar os lados (Jivago, o homem bom, e seu antagonista, interpretado por Tom Courtenay). Há também nesse filme de 1981 uma relação de disputa entre o artista e o revolucionário, consumida dentro do próprio Reed. Ao escolher a segunda opção, escolheu um caminho tortuoso; poderia optar em ser um jornalista de sucesso, estabilizado em seu reduto de liberalidade, como fizera muitos intelectuais daquele tempo. O herói preferiu se manter guiado pelo que julgava necessário, que era levar justiça para os menos abastados – mesmo que em forma de palavras. Um intelectual falando às massas, aos operários e camponeses, não fazia com que não fosse levado a sério. Era, também, um digno vermelho.

de http://cinemasemtempo.blogspot.com/

Nenhum comentário:

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails