Medos comuns em ambientes complexos


Qualquer gênero atribuído a este filme de David Lynch pode parecer distante do que realmente é. Em seu interior – ou no interior de Lynch – o filme é mesmo sobre qualquer coisa que não pode ser, qualquer coisa antes não atingida ou sequer alcançada por outro cineasta. É um exercício de pura diferenciação pela via de origem de um dos diretores mais produtivos e diferenciados dos últimos anos. Não por acaso, cada vez mais, Lynch é ligado ao cinema surrealista; mas antes, entre trabalhos como esse e A Estrada Perdida, por exemplo, passou um longo tempo mergulhado no suspense, na voz penetrante de Dennis Hopper e na bela canção titulo de Isabella Rossellini em Veludo Azul, e nos cabelos molhados do corpo de Laura Palmer, assassinada, após ser retirada das águas em Twin Peaks.

Em Eraserhead, Lynch surge como um maluco genial – na época, antes de se tornar mundialmente conhecido por O Homem Elefante, mais maluco que genial. De certa forma, o diretor de cinema sempre teve de carregar o adjetivo. Mais uma vez, voltando a esse enigmático filme de 1977, tem-se a exemplificação do impossível como fonte de seu frescor, o que pode vir a ocorrer com Cidade dos Sonhos e o ainda mais difícil Império dos Sonhos. Carregar o título de um dos únicos cineastas imersos no surrealismo – ou “novo” surrealismo – concede a ele um status de autor, já que é difícil assistir Eraserhead sem perceber incursões pelo movimento eternizado por Luis Buñuel e Jean Epstein na década de 20. Preso a salas escuras, um barulho preso no vácuo realça a capacidade de criar um clima, muitas vezes, insuportável. E nesse mundo bem formulado, segundo a situação de um homem preso, sem opções, está a mágica do trabalho de Lynch: ter semelhança com qualquer coisa de dentro das cabeças alheias, mas coisas pouco observadas antes quando o assunto é cinema. A confusão criada por Lynch assegura a ele o inicio de uma carreira aparentemente sem altos e baixos, e com um estilo que seria levado para quase todos seus longas-metragens. Isso tudo tem inicio com a chegada de Eraserhead na segunda metade dos anos 70, período em que maluquices eram bem vindas e premiadas, em que diretores falavam de sua loucura particular – como numa viagem de droga sem fim, vislumbrando o futuro. O feito mostra-se incrível depois de tantos anos. Fruto de maluquices e experimentação, filmes como esse continuam a serem decifrados, não perdendo nada de suas raízes; ao contrário, o caminho dos dramas familiares, optados por alguns cineastas no final dos anos 70 e início dos 80, mostram a queda de qualidade a partir de então. Profissionais como Lynch, mesmo fazendo bons dramas como O Homem Elefante e, mais tarde, História Real seguem como exemplo de uma geração que seguiu firme seu estilo e não adotou o seguimento de um tempo.

Toda a loucura envolta de Eraserhead pode estar ligada ao cérebro de seu personagem central, Henry Spencer (Jack Nance). As primeiras imagens mostram dois planos sobrepostos: o rosto do personagem, inclinado, e o fundo, um meteoro ou um planeta – ou qualquer coisa parecida. Não dá para assimilar ao certo o caminho. Mas ele ocorre, pensa-se, pela maneira correta, redonda, e até mesmo útil a quem vê. Dessa forma, Lynch demonstra extremo controle da narrativa, não permitindo que seus personagens sejam instrumentos de loucura. Analisados friamente, surgem como propulsores do clima desejado, ou seja, de um mundo inexistente no qual eles próprios sabem disso e sentem-se manipulados. Podem, ainda mais, serem fruto da inutilidade humana – confundida com utilidade – do personagem que, no inicio, está pensando longe, longe demais para surgir dali qualquer coisa real. Nem por isso mostra-se descartável, com uma intrigante visão do espaço – em que um espermatozóide alienígena, numa possível análise da fita, teria sido lançado contra seu mundo, mais precisamente à sua namorada e futura esposa. A confusão de Lynch revela-se completa quando Spencer vai ao encontro da família de sua namorada; no local, ao contrário de todo aquele ambiente externo sufocante, de grandes empresas e máquinas, vê-se uma típica família interiorana. Suas roupas denunciam pessoas, talvez, do passado se unindo ao Spencer futurista, de cabelos em pé. Ainda mais, vendo por outro foco, esse tempo pode não ter relevância alguma. A maneira de ser da família não interessa, e tão pouco tem algo de importante o cabelo de Spencer – a não ser quando se pensa no título ou na passagem do filme que mostra seu cérebro servindo de matéria prima para fazer borracha, confirmando a metáfora fácil de perceber. No entanto, tratando-se de Lynch, isso ainda é pouco.

A insegurança de Spencer o faz semelhante aos personagens de Kafka; sua inabilidade em lidar com o meio – pelo contrário, mostra grande habilidade em lidar com o cérebro – alinham sua atmosfera à do próprio Lynch, que teve de se arriscar para se tornar o cineasta de hoje. O homem tem mais facilidade de transformar seu meio antes mesmo de lidar com ele, por meio de projeções e idéias. Assim, os sonhos são freqüentes em seus filmes. Spencer encontra com uma bela mulher na frente de seu apartamento; esta lhe avisa sobre um convite para visitar a família de sua namorada. Naquele momento é possível sentir todo o medo do homem isolado, sem saídas contra a prisão à frente. Não demora muito para que entre um filho na história, um bebê alienígena. A mãe de sua namorada, chamada senhora X (Jeanne Bates) sente-se atraída sexualmente por Spencer, isso depois de perguntar se o mesmo já teve relações sexuais com sua filha e antes de avisá-lo sobre um possível “bebê” no hospital. Como o tempo pode não dizer muitas coisas aqui – como a época em que se passa –, acredita-se que Spencer esteja vivendo em um mundo produto de seus medos. Interessante é pensar que, se este mundo é feito por sua imaginação, poderia sim ser moldado como um local para ele próprio se apresentar como soberano e poderoso. Isso não ocorre. Spencer é um homem fraco, quase morto, vagando por um cenário amedrontador. Ao fundo, ruídos de fábrica deflagram a industrialização; a fotografia é densa e equilibrada; no interior da casa da família X têm-se mais um pesadelo posto em prática, ligado à sexualidade.

O diretor de Veludo Azul discute a insatisfação humana em relação aos choques com a sociedade, com o sobrenatural, com o inexplicável, mesmo que isso seja somente um sonho. A realidade não faz parte do espaço ocupado por Spencer; por outro lado, as insinuações e reações são as mais reais possíveis, sempre tendo ligação com os medos de qualquer pessoa (como ter filhos, se integrar a uma família, ser engolido pela sua loucura e, ainda mais, não ter estrutura para conviver em um conglomerado de pessoas). Sobre a liberdade e sua falta, não restam dúvidas de que Spencer sente-se atraído pelo sobrenatural, sobre como explorar a si mesmo – em uma interpretação – ou deixar que seus desejos o explorem – em outra interpretação. Eraserhead significa muitas coisas enquanto previsto como um filme cujo personagem central está moldando sua própria vida em uma viagem possivelmente sem retorno. Não se parece com nada antes realizado, com uma mistura de gótico, ficção científica, terror e surrealismo. O bebê, difícil de distinguir, faz surgir no pai e na mãe reações como em todos os casais, até chegar ao extremo, quando a mulher vai embora e deixa-o aos cuidados do pai. Há também uma cena difícil, em que Spencer decide “libertar” o bebê do tecido enrolado em seu corpo; depois, resolve matá-lo. Para finalizar, a Dama do Radiador (Laurel Near) espera por ele em um palco semelhante àqueles mostrados em outras fitas do cineasta, em sua recorrível fusão de belo e grotesco até confundir o espectador. Essas ligações tão estreitas entre mundos, desde o espermatozóide alienígena em passagem pela terra, guiado pelo cérebro do protagonista, até um final trágico, depositam diversos sentidos à história. Como outros filmes surrealistas, não compreender pode ser o início de um ótimo entendimento.

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