Berlin Alexanderplatz - Meu Sonho do Sonho de Franz Biberkopf, de Alfred Döblin: um Epílogo


O inferno não foi visitado por Franz Biberkopf depois de sua morte. Não há morte, mas sim loucura, ou uma espécie de reflexão que faz evidenciar todo sua visão sobre o mundo. Aproveitando, Fassbinder mostra um universo antes nunca pensado; mistura sadismo, fé, negação, espera, dor, confusão, tudo num clima difícil de descrever em palavras. O caminhar de Franz por dois mundos é seu deposito de amargura, de infelicidade, e não estranha imaginar que seu fim seria assim mesmo – como um resumo de maus feitos mesclado à procura por redenção. E nesse inferno imaginado, Franz reencontra Mieze, ou seu espírito. Tenta tocá-la, reanimá-la, mas fracassa. Depois se vê na rua, enlouquecido; é levado pela polícia e, logo, colocado em um hospital psiquiátrico.

Günter Lamprecht, como Franz, é o único ator do elenco de Berlin Alexanderplatz presente em todos os episódios. Essa longa série pertence a ele, mede suas reações e, acima de tudo, faz aflorar sentimentos diversos em um público que aprendeu a amar e odiar Franz em um curto período de tempo. 15 horas e meia de filme podem parecer muito, mas, por que, afinal, ainda não é possível conhecer tão profundamente Franz Biberkopf? Mesmo a obra na qual a série de Fassbinder é inspirada não visava entregar quem ele é ou mesmo porque esse homem repleto de defeitos seria um condutor pelos arredores de Alexanderplatz. Há um paralelo entre homens e animais num ambiente industrializado, crescendo sem proporções respeitáveis e, assim, resta a comparação com o gado de corte, o animal condenado antes mesmo de nascer. Incrivelmente, essa obra parece premonitória em relação à guerra e, sobretudo, à presença do nazismo. Numa das cenas mais fortes, Franz e Mieze, em delírios, serão mortos como animais; e dos dois lados da sala do matadouro jaz os homens da gangue de Pums, como os grandes algozes.

Fassbinder iniciou carreira com um cinema próximo do marginal, ganhou espaço e, depois, tornou-se um dos principais realizadores da Alemanha. Durante sua carreira relativamente curta, mas que rendeu um número gigante de obras importantes, empenhou-se em deixar uma marca. No caso de Berlin Alexanderplatz, é justamente nesse epílogo que se vê o lado mais louco e genial do diretor, livre para criar e mostrar toda sua ousadia. Embarca, por momentos, no surrealismo, brinca com a religião, inverte ainda mais as posições da obra de Döblin e mostra um céu – ou inferno – como antes nunca havia surgido – e isso, pior, pode estar acontecendo na própria Alemanha anterior ao nazismo de Hitler. E seu Biberkopf de Lamprecht é uma escolha perfeita (difícil imaginar outro fazendo esse papel). Consegue convencer como cafetão, o filho longe da mãe e, ainda, como o assassino apaixonado. Faz, de quebra, a platéia gostar dele, assim como é impossível não se afeiçoar pela Mieze de Sukowa. Será que seus gritos de dor um dia sairão da cabeça de qualquer cinéfilo? Poucas obras reúnem um elenco tão poderoso e tão bem qualificado. O Decálogo, de Kieslowski, é outro exemplo – e um dos únicos – de uma série com tamanha força narrativa.

A obra de Döblin recebeu um tratamento a sua altura. Uma superprodução, não para qualquer público. Às vezes muito teatral, acaba vencendo a mesmice pela grande qualidade de diálogos e pelas excepcionais interpretações. A luz artificial mescla-se à fotografia granulada, aos ambientes escuros, a todos os lugares únicos dessa obra de Fassbinder. E, para o final, um grande presente. Todos os personagens descem ao inferno, enquanto o diretor, na companhia de dois anjos sem sexo aparente, assiste essa junção de homem e animal, do pecado e da redenção, para, ao fim – e de volta ao mundo real – reinar a mediocridade do futuro de Franz. O que ele se tornou foge da loucura de seus sonhos. Agora, com a chegada dos anos 30, basta esperar o pior.

http://cinemasemtempo.blogspot.com

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