Berlin Alexanderplatz - A Cobra na Alma da Cobra

Mieze diz não saber nada sobre Franz – “Eu apenas o amo” – e, no desenrolar do décimo segundo e terceiro episódio da série, não terá muito tempo para saber mais. Ela é perseguida por Reinhold, há algum tempo confirmado como o grande vilão de Berlin Alexanderplatz. E, num local onde o casal amoroso do filme eternizou um belo romance – que também mais se parecia uma relação de mãe e filho –, Reinhold resolve, depois de um acordo com Meck, levá-la. O pequeno “anjo branco” é vítima de um macabro plano, pois, na cabeça do vilão, a possibilidade de inúmeras mulheres estarem a seu alcance ainda está viva, principalmente quando se trata das mulheres de Franz. Ao ser avisada das antigas trocas de mulheres, a reação de Mieze é apenas uma longa gargalhada – o que, a seu modo, intimida Reinhold.

Os espaços entre todos esses personagens, próximo do fim da série de Fassbinder, são curtos demais. Mas vivem, todos eles, em ambientes distintos, e isso faz com que nasça certa individualidade. O resultado é a falta de conhecimento sobre seus próximos, mesmo quando os centímetros de distância diminuem cada vez mais. É um território, por conseqüência, de inúmeras possibilidades. Todos os personagens navegam por mares desconhecidos. Franz acredita que Reinhold é seu amigo, enquanto, ao contrário, evita Meck; Mieze não sabe nada sobre Franz e sobre seus amigos, o que permite que ela seja levada pela conversa de Reinhold. Para piorar, seu espírito de prostituta faz com que ela seja sempre boa demais com os homens que a cercam – boa no sentido de que a conversa seja sempre prolongada e, assim, salientando o papel de mercadoria das mulheres durante todo os doze capítulos.

O espaço verde, longe da civilização, onde Mieze e Franz trocam alguns afagos é um local que faz nutrir sonhos e possibilidades. Depois da terrível briga do casal, é lá que tentam esquecer. Param primeiro em um bar; ele pede uma bebida, ela um sorvete; uma mulher do estabelecimento repara nas marcas no rosto de Mieze. E o que fazer? Talvez ela só tenha sobrevivido porque era apenas um braço contra seu corpo pequeno e frágil. Difícil de imaginar – como seria mostrado no capítulo seguinte, numa das cenas mais brutais – é sua face angelical compondo uma cena tão horrível: morta, dentro de um caixote, ela foi enterrada no mesmo local onde, junto de Franz, havia vivido bons momentos.

Berlin Alexanderplatz - Saber é Poder e Deus Ajuda a quem Cedo Madruga


Alguma outra obra, seja no cinema ou na televisão, já apresentou personagens como estes, de Berlin Alexanderplatz? É bem provável que não. Ao todo, a série comprime algumas situações – como alguns rápidos relacionamentos de Franz – e estende outros – principalmente nas idas e vindas, no reconciliar e no perdão, como neste décimo primeiro episódio. Difícil, denso e, até mesmo, aterrorizante. São assim os gritos de desespero de Mieze, após ser golpeada por Franz. Lançada ao chão, ela é espancada, com golpes fortíssimos, que faz lembrar, tão facilmente, outra cena comum em toda a série: o momento da morte de Ida, a verdadeira e primeira mulher do protagonista, já que Eva, não mais que uma de suas antigas prostitutas, fora para ele como uma filha perdida e de volta ao lar. Mas é sempre difícil encarar filhas, o passado, toda essa burocracia cristã e reservada às pessoas que decidiram viver numa sociedade de muitas regras. As atitudes de Franz, por sua vez, nada tem a ver com essas regras familiares, como deixa claro ao aceitar gerar um filho em Eva, que será, acredita, dele e de Mieze.

Qualquer resquício de brutalidade – como fica muito claro em Saber é Poder e Deus Ajuda a quem Cedo Madruga – convive junto do perdão, sendo este o mais improvável num outro caso. Mas, nessa série (onde Fassbinder inverte tudo), aceitar o companheiro depois de ser brutalmente espancada condiz com outras várias situações antes mostradas. E mais: Franz, pouco antes de descobrir que Mieze está apaixonada por outro, levou Reinhold a sua casa, escondeu-o em baixa de uma coberta, na cama, e preparou uma espécie de teatro sem qualquer significado claro ao espectador. Para seu azar, o show não foi como esperado – pelo menos, para ele. E Reinhold, com aguçados ouvidos, pôs-se na tentativa de entender a relação desse casal, convertida numa briga intensa, em gritos de pavor. Com um único braço, Franz chegou perto de matar sua companheira. Depois de dividirem algumas mulheres, os “amigos” de gangue continuam a perpetuar pactos como os aqui mostrados – e Franz, infelizmente, continua a acreditar nas palavras do malvado Reinhold.

Aceitar a vida como ela é, de homens e mulheres em seus papéis naturais, fora o que o protagonista desejou alcançar quando deixou a cadeia. Tentou levar uma vida comum. E neste decorrer, era ele, sempre, quem deveria trazer o sustento da família para dentro da casa – nunca o contrário. Depois, quando volta a assumir a face do vigarista de antes – também um pouco do assassino de outros tempos, como fica evidente nesse episódio –, aceita ser sustentado pela mulher; e Mieze não vê problema algum em manter a casa com seu dinheiro acumulado na prostituição. São papéis sempre invertidos, isso se for levado em conta posições estipuladas pelo modo de vida comum, e, tudo isso, somado à sociedade ainda mais conservadora dos anos 20. Nesse exemplo da mudança de papéis – a mulher fica aborrecida quando o marido aparece em casa com um pouco de dinheiro – o conflito a seguir coloca em evidência o mais forte. Ele não precisa trabalhar, só quer ser amado e tem o direito de bater, se necessário. E o perdão? Incrivelmente, ele virá.

De http://cinemasemtempo.blogspot.com/

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