Julio Cabrera

CINEMA E FILOSOFIA
(De como o cinema pensa e a filosofia se estremece)


Em torno do ano 1995, eu tentava pela primeira vez vincular as minhas duas mais antigas paixões, o cinema e a filosofia. A literatura serviu de mediação. Pensei muito nestas relações no período de minha adolescência, quando era fortemente atraído pelas idéias de Sartre através de seus romances e peças, proporcionando-me elementos para pensar o mundo. Eu sabia que meu primeiro acesso à filosofia tinha sido literário, de maneira que devia existir uma dimensão do pensamento que era literariamente articulável.
Assim como a literatura, o cinema tinha acompanhado sempre a minha formação como pensador de uma realidade que me decepcionava profundamente, mas que me fascinava quando posta em imagens. Um encontro com Christian Metz em Córdoba, dando ele um curso sobre semiologia nos setenta, me impressionou vivamente, sobretudo no que se referia à possibilidade de ver o cinema como forma de pensamento. Em nossas línguas balbuciantes (eu não sabia quase nada de francês, e Metz estava tentando falar espanhol), esse curso deu-me subsídios que apenas décadas mais tarde eu me atreveria a organizar numa linha de investigação definida.
Comecei a escavar nesta pré-história, nessa vivencialidade anterior a meus estudos filosóficos sistemáticos na universidade. Fui juntando reflexões, lembrando filmes que tinham me impressionado, vinculando-os com meus pensamentos filosóficos paradigmáticos, com intuições que me atormentavam. Muitas coisas foram surgindo na minha imaginação conceptual, e o livro, após passar por muitas versões, foi no ano 98 para a editora Gedisa de Barcelona, que acabava de publicar a Crítica de la Moral Afirmativa (1996), e que editou finalmente o livro de cinema em 99 sob o título: Cine: 100 años de Filosofia. Una Introducción a la filosofía a través del análisis de películas. (O livro ganhou em seguida uma tradução para o italiano pela Mondadori, com o curioso título de Da Aristotele a Spielberg e, mais recentemente, uma tradução portuguesa pela Rocco, com o título O cinema pensa).
Eu penso que os filósofos tiveram, ao longo de toda sua história, um problema mal resolvido com a exposição imagética e sensível de idéias, desde as célebres imagens de Platão sobre os poetas até as análises habermasianas de Italo Calvino. É incrível como os filósofos do século XX, que conviveram com o nascimento e posterior crescimento do cinema, não produziram reflexão filosófica importante acerca das interfaces de cinema e filosofia até as obras de Deleuze (as tentativas anteriores de Bergson, Merleau-Ponty, Adorno, etc, parecem um pouco decepcionantes). Penso que o cinema tem muitíssimo a dizer para o filósofo, inclusive muito mais do que Deleuze foi capaz de descobrir a partir de uma visão, creio eu, muito condicionada por um conjunto muito restrito de interesses, como é normal que aconteça com autênticos filósofos.
Como ficou antes exposto (ver FILOSOFIA), vejo a filosofia indo de Kierkegaard a Carnap (é kierkarnapiana). A filosofia é, para mim, a totalidade do continuum, e não só os pólos. Parece-me que a literatura e o cinema, em virtude de suas formas expressivas (e mais além, inclusive, da inserção dessas práticas em contextos sociais e políticos "populares" como o cinema de Hollywood), conseguem driblar melhor as pressões sobre a exposição de idéias e sujeição a moldes representacionalistas, produtivistas e otimistas do mercado filosófico, tal como se apresentam na atual fábrica acadêmica de idéias. O que sustento é que a literatura e o cinema podem conseguir pensar o fluxo histórico-vivido (o pólo kierkegaardiano do continuum) sem sentir a necessidade de reduzi-lo à representação, ou a conceitos puramente intelectuais. Parece mais fácil carnapizar Heidegger do que Ridley Scott ou Milan Kundera. (Talvez seja esta uma das minhas últimas ingenuidades).
Não que os cineastas e escritores sejam mais lúcidos ou corajosos que os filósofos, mas que sua própria "linguagem" os conduz aonde eles mesmos talvez nem desejavam ir, obrigando-os a dizerem e mostrarem coisas que nem sonhavam. Um filme como ASSASSINOS POR NATUREZA, de Oliver Stone, consegue explorar o tema nietzscheano da naturalização dos valores de uma maneira situacional e intolerável, muito mais mergulhada na coisa mesma do que muitos inteligentes estudos sobre Nietzsche. Se filosofar for um tipo de movimento que se isenta da obrigação de ater-se a uma dada "tradição" (de Tales a Wittgenstein), o cinema e a literatura podem ser filosóficos a partir da própria força com que são capazes de gerar conceitos.
O cinema e a literatura podem ser filosóficos se aceitarmos que a linguagem, o estilo, a gramática da filosofia podem variar imensamente, desde o poema filosófico até a exposição more mathematico, o ensaio e o aforismo: a filosofia não está condenada a um único estilo expositivo. E se aceitarmos que o filosofar esteve vinculado apenas contingentemente com uma tradição, pensadores ou artistas ou estudiosos de outras tradições podem pensar o real e articulá-lo em conceitos, ou mostrá-lo em sua vivencialidade histórica, mesmo fora dessa tradição. Se filosofar consiste em dizer idéias sobre a condição humana, a moral, a linguagem, etc, não há nada que condene estas problemáticas a uma forma escrita de exposição. É uma contingência histórica que as imagens, e não os textos escritos, não tenham sido escolhidos pelos humanos para exprimir idéias filosóficas.
A minha idéia é que o cinema constitui um dos meios, não certamente o único, que gera conceitos de tipo logopático, conceitos cognitivo-afetivos, e que com essa abordagem de problemas o cinema contribui a problematizar os tratamentos tradicionais dados a problemas pela filosofia, na medida em que esta continua apática, ou seja, atrelada ao uso puramente intelectual de conceitos. Algo acerca da natureza e limites do pensamento filosófico, tal como hoje o entendemos, deverá ser colocado à luz destes estudos sobre cinema e filosofia. Mas, por outro lado, creio que também a filosofia escrita, em toda a sua historia, tem sido logopática sem querer assumi-lo abertamente, ou seja, tem pensado com a mediação inconfessa do afeto. Paralelamente, se pretendeu, muitas vezes, ver o cinema como um fenômeno puramente afetivo (de "impacto"), sem nada de cognitivo. As minhas noções de logopatía e conceito-imagem tendem a evitar estas dicotomias, desvelando a afetividade do intelecto e a cognitividade do afeto. A filosofia, dominada, em toda a sua tradição, desde a filosofia grega até o século XIX, pelo intelectualismo, só recentemente começou a sentir a necessidade de enriquecer a sua noção de racionalidade, repensando as relações tradicionais entre o intelectual e o afetivo-sensível.
Um fato fundamental foi o surgimento, dentro da história da filosofia, de pensadores histórico-existenciais aos que comecei a denominar logopáticos, tais como Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger, e menos certamente, Hegel e Freud. Estes pensadores, embora em sentidos diferentes, pretenderam problematizar a tradição intelectualista em filosofia (sim, Hegel também, contra as monótonas Histórias da Filosofia que o apresentam como o grande “panlogista”, o intelectualista por excelência. Veja-se meu artigo “Acerca da controversa entre Hegel y Schopenhauer em torno das relações entre a vida e a verdade”), dando um lugar e uma dimensão diferentes para a componente afetiva e existencial do pensamento. Eles também pretenderam problematizar a linguagem mesma na qual a filosofia tinha sido exposta até então, tentando mostrar, por meio de novas formas expressivas, aquela dimensão não puramente intelectual do pensamento.
O surgimento dos pensadores logopáticos na história da filosofia numa data tão recente quanto o século XIX (e a sua conseqüente ocultação no século XX hiper-acadêmico), parece-me um fato de fundamental importância para pensar as relações entre cinema e filosofia, pois assinala para o fato de não ter sido apenas externa a imposição de estender os limites da forma e o conteúdo filosófico (como desafios vindos dos modernos meios de expressão visuais, tais como a fotografia e o cinema), mas também interna, uma necessidade da própria filosofia (como se os mesmos limites expressivos estivessem sendo visualizados e vividos, digamos, partindo de Hegel, de Musil e de Luchino Visconti). Os pensadores logopáticos mostraram que os próprios filósofos estavam dizendo suas idéias forçando os limites da linguagem escrita em suas possibilidades expressivas tradicionais, como tentando tornar "visuais" e "móveis" seus pensamentos, evitando as limitações da argumentação linear, tentando captar uma verdade temporalizada. Se da própria filosofia surgia este novo impulso de arremeter contra os limites da linguagem, porque não seria legítimo tentar encontrar a mesma coisa partindo desde uma outra linguagem, desde um outro medium expressivo? Os experimentos dos filósofos logopáticos (o poema filosófico, a biografia, a frase especulativa, o aforismo), pareciam aproximá-los mais e mais dessas outras formas de expressão, tais como o cinema e a literatura, porém não para despojar a estas formas de suas clássicas pretensões de verdade e universalidade, mas para apresentá-las numa outra linguagem. Não que o cinema e a literatura removessem essas pretensões da filosofia mas, pelo contrário, que a filosofia as levava para o cinema e a literatura. Outra maneira de dizê-lo era afirmar que havia conceitos no cinema e na literatura, precisamente os que eu estava chamando de conceitos-imagem.

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