Crash


Crash Monta o Verdadeiro Estados Unidos

“Melting pot” pode ser traduzido por “caldo de cultura”. Colocam-se na panela culturas diferentes e acende-se o fogo, elas vão se chocando umas às outras na medida em que o fogo sobe; então tudo ferve, um pouco é derramado, outro tanto evaporado e, no fim, obtém-se um caldo resultante da fusão de tudo aquilo. “Melting pot” é a expressão de intelectuais estadunidenses para os Estados Unidos. Nenhum filme de Hollywood conseguiu dizer o que é o “melting pot”. Nenhum, ao menos não até “Crash” (Paul Haggis, 2004).
Crash não mostra os Estados Unidos de brancos e negros, que nada mais é que uma expressão do que a mídia captou a partir do Movimento dos Direitos Civis. Crash nos dá, pela primeira vez, o resultado em processo – e não estanque – da sociedade americana como o lugar onde todos são imigrantes. Gilles Deleuze escreveu certa vez que, diferentemente da revolução bolchevique, a revolução pragmatista americana não dizia “trabalhadores do mundo uni-vos” e sim “estrangeiros do mundo uni-vos”. E John Dewey caracterizou o americano par excellence como o “americano hifenado”, ou seja, o ítalo-americano, o afro-americano, etc. A América é o único lugar do mundo que está em movimento. Desde Colombo, a cada dia novos grupos chegam e se instalam, e passam então a usar uns a favor dos outros e um contra os outros um distintivo poderoso “I am American, and you?”. Os grupos mais antigos podem exibir esse distintivo aos grupos mais novos, até esses grupos mais novos encontrarem outros mais novos e assim por diante. A idéia básica de cada grupo é a de lutar pela sua identidade até o momento em que ela não é mais conveniente. Para alguns grupos o hífen é importante em determinados momentos. De certo modo, ele só é importante após a parte inicial da palavra, aquela vai antes do hífen, ter sido negada e até mesmo aniquilada durante um bom tempo.
Richard Rorty, o filósofo que mais tem a dizer sobre a América, ao menos em nossos dias, ficou impressionado com o filme. Creio que não só pelo retrato que o filme nos dá do “melting pot” – algo sobre o qual o próprio Rorty vem teorizando –, mas porque se trata de uma película que traz um dos elementos chaves da filosofia pragmatista: a contingência. Nenhum dos personagens é fechado, é uma personalidade terminada, eles são plásticos, e assumem diversas posturas segundo o que há de mais livre, que é a história. Os sujeitos do filme são – no sentido que Foucault queria – não mais sujeitos, não mais indivíduos modernos, mas agentes. Cumprem o que devem cumprir, transformando-se completamente segundo as contingências.
Não há uma cena desprezível em Crash. Todas são fundamentais. Mas é claro que a do chaveiro latino Daniel (Michael Pena) levando um tiro e sendo protegido pela filha pequena é a que deixa o símbolo da América após o “September Eleven”: medo e esperança. Um latino (cidadão americano) morreria ali, ou teria sua filha perfurada, por um persa (também cidadão americano) caso uma espécie de mágica não viesse a acontecer. Uma mágica simples: não havia balas verdadeiras no revólver. A filha do persa havia comprado para ele, propositalmente, apenas tiros de festim. Aqui, a “América” dos sonhos de liberdade e respeito individual dos Pais Fundadores e dos pioneiros se encontra com os “Estados Unidos”, a terra do complexo industrial militar que consegue dar uma arma para cada cidadão. Todos poderiam ter seus cinco minutos de raiva, culpando o vizinho pelas suas próprias faltas, mas com balas de festim.

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