PENSAR O CINEMA: O PROBLEMA FILOSÓFICO DA IMAGEM E O ENSINO DE FILOSOFIA

Adelar Conceição dos Santos[1]
Cristiano Cerezer[2]
Everson Daniel Silva da Costa [3]
Elisete M. Tomazetti[4]



O problema filosófico da imagem

Em filosofia a imagem remonta sobretudo ao olhar e portanto a percepção, ou seja, uma das formas pelas quais recebemos dados sensíveis e pela qual percebemos o mundo, mas não só. Uma imagem não se refere unicamente a um objeto existente, mas também pode ser a recordação, ou a representação de um objeto que não está pressente, ou pode ser formada pela imaginação, de algo que não existe ou que é fictício.
Os filósofos do século XVIII repensaram o conceito de imaginação para fundamentar um outro conceito que dominou na época: a capacidade de sentir (sensibility). As explicações divergem entre a imaginação como dependente da atividade dos sentidos e a imaginação como força responsável por toda a atividade sensorial. Outros preferem não considerar esta ligação entre a sensibilidade e a imaginação, porque reconhecem nesta uma capacidade criadora que não está direta ou indiretamente ligada aos sentidos. Hobbes (1588-1679), Locke (1632-1704), Berkeley (1685-1753) e Hume (1711-1776) não diferem quanto à definição essencial da imaginação, que fazem depender de simples formação de imagens. Hume faz corresponder, em vários momentos do seu livro Investigações sobre o entendimento humano (1777), o conceito de imaginação ao de mente (“mind”), que considera apenas um conjunto de imagens, ou, por outras palavras, a imaginação é apenas aquilo que acontece quando relacionamos várias imagens. Kant (1724-1804) tem uma proposta diferente: considera que as nossas “impressões” (aquilo de que tomamos conhecimento) já está estruturado pelos sentidos, competindo à imaginação a síntese das experiências perceptíveis ao construir imagens mentais para essas “impressões”.
O século XX também conheceu algumas reflexões sobre a imaginação. Contudo, diferente dos modernos, os filósofos contemporâneos nos legaram mais resultados da imaginação criadora do que grandes sistematizações teóricas. A origem do ato imaginado interessou menos do que o imaginado. Um dos grandes exemplos desta mudança de posicionamento foi Henri Bergson.

Bergson: a intuição

O grande objetivo principal de Bergson foi o desenvolvimento de uma crítica radical a proposta positivista de fundamentação das ciências, e a proposição de uma nova epistemologia que levasse em conta a essência movente dos fenômenos tratados.
Em termos do conhecimento em geral e do conhecimento científico em particular, para o pensamento bergsoniano o saber verdadeiro é dado pela intuição. Intuição é conhecimento imediato, isto significa que o ato de conhecer acontece de forma direta, sem mediações. Conhecimento em que sujeito e objeto coincidem, pois o sujeito adentra o objeto e o conhece em sua essência interna. O que se conhece de forma imediata é o movimento essencial da realidade, é a mudança contínua das coisas no tempo. Devemos estar atentos a radicalidade da visão bergsoniana de realidade, para a qual não há imobilidade nem na superfície nem na essência. Neste mesmo sentido, não há a coisa que muda, há somente a mudança, porque “a coisa”, toda ela, é movimento. Deriva daí o significado sutil, da palavra movente que, muito mais do que ser a qualidade daquilo que se move ou está em movimento, significa aquilo que é movimento; algo movente é aquilo que, em sua essência e totalidade, é movimento. Esse pensamento é inovador na tradição porque pensa uma essência que não é aquilo que permanece, mas é aquilo que muda constantemente. Bergson chama a esse movimento essencial da realidade de duração, que somente nos é dado a conhecer pela intuição.
A intuição é saber ainda não mediado. A linguagem é sua mediação. Saber mediado é a intuição expressa pela linguagem. A partir destas premissas um problema epistemológico se impõe: se o saber mediado é pressuposto do conhecimento compartilhado, como pode a intuição, que abdica da mediação, assumir-se como condição do conhecimento verdadeiro? Deleuze perguntará como a intuição, que designa antes de tudo um conhecimento imediato, pode formar um método, uma vez que método implica essencialmente em uma ou duas mediações? E mais, diante da necessidade de comunicarmos nossos saberes qual a linguagem mais adequada para dar expressão a esses saberes originários da intuição? A linguagem não é uma só e algumas linguagens prestam-se melhor a mediação da intuição do que outras. A linguagem conceitual, por exemplo, em função da solidez de sua construção, não é capaz de comunicar, fielmente, aquilo que está presente na intuição.

O problema da comunicação da intuição: os limites da linguagem conceitual

É interessante notar que na intuição ocorre uma coincidência entre sujeito e objeto, restando apenas uma distinção didática e referencial entre ambos, porque na efetividade do ato de conhecer, sujeito e objeto passam a fazer parte de um único e mesmo movimento; não há mais separação, mas sim coincidência. Ao retornar a uma experiência silenciosa ou pré-predicativa de coincidência com o ser, a consciência descobre a inadequação nativa da linguagem.
Para expressar e comunicar esses pontos de vista exteriores ao objeto, a inteligência recorre a símbolos. Expressar algo por meio de símbolos é expressá-lo em função do que ele não é, pois o símbolo descreve algo se referindo a outro. A forma mais tradicional de utilização do símbolo é o conceito. Quando, por exigência pragmática da inteligência, o símbolo cristaliza-se em conceito, fixa-se num único significado e, por conseguinte, não pode acompanhar o movimento fluído da realidade; desta maneira, a inteligência não pode conhecer a sua real essência: o movimento.
O passo seguinte é justapor os vários conceitos (pontos de vista) na tentativa de recompor a totalidade do objeto, e chegar assim ao seu equivalente intelectual, a representação. Finalmente, equivocadamente, os símbolos acabam por substituir o objeto que simbolizam, e quando isto acontece tanto o pensamento tradicional quanto as ciências passam a pensar a partir dessas representações conceituais, e não mais a partir do próprio objeto, mantendo-se afastadas daquilo que o objeto tem de essencial e próprio.
Da constatação da inadequação do conceito, proveniente da cristalização da significação simbólica, no momento dar expressão ao que é captado pela intuição, surge um grande problema: como comunicar o conteúdo de uma intuição sem a utilização de conceitos? Porque todas essas representações simbólicas remetem a uma forma de expressão exterior e fixa, e a intuição é sempre interior e móvel.

A comunicação por meio de imagens e metáforas

Se a linguagem conceitual não pode comunicar o saber intuído, estaríamos fadados ao mutismo e a falência do conhecimento mediado? Não haveria mediação eficazmente comunicativa para o saber? Ou podem existir outros modos de expressão, outras linguagens capazes de dar conta de comunicar este saber? Imagens e metáforas é a proposta bergsoniana de tentativa de superação do obstáculo.
Como vimos, em razão de sua origem intelectual e de sua função operacional e social, a linguagem conceitual não pode dar conta de dizer o ser, o problema da comunicação da intuição torna-se mais agudo e, talvez, completamente insuperável. Como dirigir a linguagem no sentido do movimento e não no da cristalização de significados? A indicação rumo a uma resposta está na própria linguagem: numa certa tensão interior entre a cristalização conceitual e a fluidez imagética. Tensão que deriva do fato de que temos apenas dois meios de expressão, o conceito e a imagem. Se não podemos usar o conceito, resta então a imagem que fará a mediação entre a intuição original e a tradução em símbolos.
A intuição original não pode ser dita, mas, na medida do possível, pode ser vista, por meio de uma imagem mediadora que nos mantém no concreto e é intermediária entre a simplicidade da intuição e a complexidade de sua tradução em palavras.
As imagens adotadas por Bergson raramente são imagens visuais estáticas; mas, sobretudo, imagens de movimento, de ação de esforço, em suma, imagens dinâmicas. O paradigma visual não é a fotografia, mas o cinema, embora Bergson tenha feito críticas ao modelo cinematográfico da inteligência.

Deleuze: a imagem-movimento

Para Deleuze, o carácter mais autêntico da imagem é o movimento. É certo que a noção deleuziana de imagem-movimento se refere antes de mais à especificidade da imagem cinematográfica, mas, tal como em Bergson, donde parte Deleuze, isso tem um alcance mais vasto, de forma que poderemos avançar que Deleuze se serve da imagem cinematográfica para mostrar o carácter fundamental de toda a imagem, para mostrar que toda a imagem é imagem-movimento e que esse movimento da imagem é um movimento fundamental da matéria (para Bergson, matéria é igual a movimento), ou, como ele diz, a “operação do Real”. Bergson diz que qualquer corte do movimento, por conseguinte aquilo a que analiticamente poderíamos chamar “imagem fixa”, é um “corte móvel”, isto é, toda a imagem é móvel. E a modulação é o processo de virtualização e de actualização. É esse o processo do tempo. É o tempo que realiza o movimento no olhar e, na medida em que se trata de um espaço-tempo, o tempo impregna toda a figura de espaço e o movimento habita já a imagem (mesmo “parada”) independentemente de qualquer manifestação temporalizada.

Em A imagem-movimento e A imagem-tempo, obras sobre o cinema, sobre as suas imagens — mas também, sobre o movimento e o tempo —, Gilles Deleuze serve-se sobretudo de dois autores, Bergson (1859-1941) e Peirce (1839-1914). Do primeiro, Deleuze retira consequências relativamente ao cinema, consequências essas que decorrem da teorização bergsoniana acerca do movimento e das imagens, prolongando, se assim se pode dizer, a sua reflexão; o segundo, Peirce, serve a Deleuze para a classificação dos signos específicos de cada tipo de imagem, signos esses que decorrem — uma vez que os signos remetem para uma assinatura, como refere Deleuze — do trabalho de grandes criadores, de grande realizadores. Bergson vai pensar a conjunção do movimento e da imagem, uma imagem-movimento. E é justamente isso que Deleuze retoma, mas agora procurando fazer a conjugação da imagem-movimento com a imagem cinematográfica.
Se, para Bergson, o problema era estritamente filosófico, consistindo numa tentativa de fornecer uma metafísica que correspondesse à concepção da ciência moderna acerca do movimento — os momentos sucessivos têm todos a mesma importância —, para Deleuze, em contrapartida, o problema já não é somente filosófico: Deleuze vê o cinema não como “o aparelho mais aperfeiçoado da mais velha ilusão”, conforme a crítica de Bergson, mas como “um órgão que aperfeiçoa uma nova realidade”. É que, para Deleuze, os conceitos que são próprios do cinema não se esgotam na sua definição técnica. O cinema, mais do que servir para pensar, pensa ele próprio, é também um órgão de pensamento (e, desse modo, um órgão que cria realidade — “o cinema é produtor de realidade.” A imagem-tempo termina dizendo que “o cinema é uma nova prática das imagens e dos signos, da qual a filosofia deve fazer a teoria enquanto prática conceptual. Pois nenhuma determinação técnica, nem aplicada (psicanálise, lingüística), nem reflexiva, é o bastante para constituir os conceitos próprios do cinema.” Para Deleuze isto é o mesmo que dizer que a filosofia deve encontrar-se com essa prática conceptual que é própria do cinema. O que exclui, segundo a sua perspectiva, a “reflexão” ou a “representação” (não se trata de “refletir” o cinema na filosofia, não se trata de fornecer uma “representação” filosófica do cinema). Trata-se, na seqüência disto, de pensar as imagens do cinema e os seus poderes, pensar com essas imagens, em correspondência com alguns problemas que a filosofia coloca ou cria.
Os problemas que a filosofia coloca ou cria: justamente, Deleuze inicia A imagem-movimento com um comentário das teses do filósofo francês (Bergson) sobre o movimento. A razão disso é que, para Deleuze, “apesar da crítica demasiado sumária que Bergson fará mais tarde [posteriormente a Matéria e memória, 1896] ao cinema, nada pode impedir a conjunção da imagem-movimento, tal como ele a considera, com a imagem cinematográfica.” Aí temos uma correspondência: o problema filosófico do movimento (e do tempo) e a imagem cinematográfica. A Imagem-movimento, pensada por Bergson, não é a imagem do movimento (um corte ou uma sucessão de cortes), nem é o movimento da imagem (uma animação artificial, técnica, desses cortes), mas é, antes, tudo junto, imagem-movimento . E para Deleuze o cinema cria o auto-movimento da imagem, é determinado, em primeiro lugar, pela imagem-movimento . Esta ligação do cinema à imagem-movimento vai no entanto ser quebrada em favor de uma imagem-tempo, uma apresentação direta do tempo — a imagem-movimento apresentaria o tempo também, naturalmente, mas indiretamente — (e temos aqui uma nova correspondência, no sentido atrás mencionado). Essa imagem-tempo cinematográfica é pensada em A imagem-tempo. Tudo isso tem que ver com as transformações que o cinema sofreu, igualmente com as transformações do mundo, mas também, e sobretudo no entender de Deleuze, com aquilo que com o cinema foi feito por intermédio do trabalho dos seus criadores.
Esta passagem de uma imagem-movimento a uma imagem-tempo tem igualmente como substrato uma idéia bergsoniana: a de “totalidade aberta”. Uma das suas teses sobre o movimento, em A evolução criadora, 1907, dizia que o movimento (o deslocamento no espaço) expressa uma transformação no todo (uma mudança qualitativa na duração [durée]) e, por outro lado, que esse todo não pode ser concebido enquanto um todo fechado, mas aberto, em constante mudança, o que supunha, no entender de Deleuze, “(…) a existência de relações comensuráveis ou cortes racionais entre imagens, na própria imagem e entre a imagem e o todo .” Mas há que introduzir outro fator: o da evolução do cinema — por conseguinte, o da evolução das suas imagens. “Houve esse modelo, mas há e haverá tantos modelos quantos aqueles que ele [o cinema] inventar .” É o que se passa com o cinema moderno: ele “(…) mostra toda uma série de cortes irracionais, relações incomensuráveis entre as imagens.(…) o essencial já não é a imagem-movimento, mas antes a imagem-tempo. Deste ponto de vista, o modelo de uma totalidade aberta que decorre do movimento deixa de ter validade: deixa de haver totalização — nem interiorização num todo, nem exteriorização do todo. Deixa de haver encadeamento de imagens por intermédio de cortes racionais, passa a haver re-encadeamentos de imagens por intermédio de cortes irracionais (Resnais, Godard) .”

Conclusão: para uma pedagogia da imagem

Em A imagem-tempo, Deleuze mostra como, no cinema moderno, som e imagem se encontram dissociados, constituindo uma relação a partir de uma não-relação. Esse cinema do simulacro é o cinema entendido como potência do falso, imagem que torna indiscernível a verdade e o falso, fazendo do falso uma grande vontade de potência, uma força criadora. Este cinema moderno, portanto, inventa a imagem-tempo que assegura uma metamorfose incessante de uma situação dada e onde a ação de personagens decididas é substituída por um movimento de mundo flutuante e ambíguo.
Nas imagens do cinema moderno, encontramos forças que põem em xeque as noções de verdade, totalidade, ordenamento. Ao contrário da imagem-movimento do cinema clássico, onde o espectador reconhece no filme situações, comportamentos, a representação de um estado de coisas, na imagem do cinema moderno, o mundo perde sua identidade, entra em crise e se torna falsificante, múltiplo. O próprio Deleuze insistiu sobre esse abismo que surgia no cinema, esse entre lugar cujo aparecimento coincide com uma certa conjuntura que interveio na própria história do cinema e no mundo com a Segunda Guerra Mundial. Guardadas as proporções, podemos afirmar que o cinema exemplifica a crise da crença em um mundo coerente e ordenado, crise da crença de que uma ação pudesse efetivamente mudar uma situação de mundo. É toda uma realidade dispersiva que surge, onde a relação dos personagens com o que lhes acontece é de indiferença ou mesmo estranhamento.
Essa disjunção entre ver e fazer – porque ver já não é ver para fazer, mas para ver – essa disjunção não só nos libera da ação, mas também nos libera desses modelos de reconhecimento com os quais classificamos o mundo na sua forma pragmática.
Talvez hoje seja a arte – mais do que a política ou a ciência – o domínio fundamental para entender os processos de subjetivação em curso na sociedade contemporânea. A obra é aquilo que o sujeito experimenta da obra, porque ela o produz – e na base desse processo encontram-se não a erudição ou a ciência estética, mas a experiência que o indivíduo compartilha potencialmente com os outros. E o cinema, mais especificamente, fornece um espaço e tempo onde se constituem novas modalidades de sujeito. Mais que representação fiel ou não da realidade, o filme oferece ao espectador um campo de experiências e só ganha existência se efetivar um sujeito para esse campo.
Hoje, as formas de mostrar e de dizer estão envoltas num excesso de estímulo, de informação, de comunicação imediata. São filmes, jornais, televisão, publicidade, videoclipe, imagens do mundo inteiro que estão aí para informar, explicar. Esse cinema, cada um com seu estilo e sua marca, propõe uma imagem necessária do mundo, da realidade, do que está aí. Não se trata de fazer oposição a um estado de coisas midiático, ser negativo ou simplesmente antagônico.
Podemos aqui entrever a possibilidade de uma abordagem da questão da imagem filosoficamente considerada, como possibilidade pedagógica no ensino de filosofia e como forma de pensamento própria, através de uma análise da imagem no cinema. A questão da imagem representa também um problema filosófico autêntico que tem a ver com a própria maneira como percebemos o mundo a nossa volta. O cinema servirá então não apenas como ferramenta didática de auxílio às aulas expositivas, mas também como uma expressão e forma de pensamento autênticos da cultura atual e, portanto como forma de filosofar autêntica.

[1] Autor: Acadêmico do Mestrado em Filosofia – UFSM. E-mail: adelarconceicao@hotmail.com
[2] Co-autor: Acadêmico do Curso de graduação em Filosofia Licenciatura Plena – UFSM. E-mail: cristianocerezer@gmail.com
[3] Co-autor: Acadêmico do Curso de graduação em Filosofia Licenciatura Plena – UFSM. E-mail: elfodassombras@gmail.com
[4] Professora do Curso de Pedagogia – UFSM e Orientadora do Projeto Cinema, Filosofia e Educação. E-mail:

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