PENSANDO EM MOVIMENTO (CINEMA E FILOSOFIA): UMA “CINEMÁTICA” DE CONCEITO-IMAGENS, QUESTÕES E ENIGMAS

Cristiano Cerezer[1]
Everson Daniel Silva da Costa[2]
Adelar Conceição dos Santos[3]
Elisete M. Tomazetti[4]

Epígrafes:

“Encontrar um homem é ser desperto por um enigma. (...) Todo falar é enigma. (...) O enigma diz tão somente respeito à subjetividade, pois só ela conserva uma insinuação, um segredo (...) O rosto humano é a porta enigmática de um infinito transcendente (...) Transcendência é pura passagem, movimento de ruptura que marca ou imprime um vestígio. Trauma se torna problema. (...) A responsabilidade é a essência de todo Dizer” EMMANUEL LÉVINAS.

“Ser estrangeiro em sua própria língua, ser gago, impelido a exprimir-se numa gagueira criativa. (...) Os filósofos também deveriam dizê-lo, e conseguir fazer: não idéias justas, justo idéias. (...) É o próprio devir-presente [diacronia do futuro no instante crítico], é a gagueira das idéias; isso pode se exprimir na forma de questões, que de preferência fazem calar as respostas [prontas ou pré-fabricadas]. Ou mostrar algo simples [contundente como um impacto exercido agudamente sobre um ponto: “martelada”], que quebra todas as demonstrações” GILES DELEUZE

“A filosofia deixa-se atingir por tudo o que o homem faz, pois diz respeito ao homem e suas questões. (...) [As dimensões fundamentais] da realidade (ou talvez toda ela) não podem ser ditas ou articuladas logicamente para que sejam plenamente entendidas, mas devem apresentadas sensivelmente, por meio de uma compreensão logopática, racional e afetiva ao mesmo tempo. [Essa irrupção sensível do real] deve produzir algum tipo de impacto em quem estabelece contato com ela. (...) A logopatia é da ordem do sentido existencial, não da verdade lógica. (...) O emocional [traumático e afetivo] não desaloja o racional: motiva-o e redefine-o.” JÚLIO CABRERA

“O que resta ao sujeito no último recôndito em que, depois de Auschwitz , ele pôde refugiar-se é a atitude de desconfiança ao comumente aceito sem objeção e o questionamento constante dos papéis e funções que lhes são impostas. (...) Na crítica sobrevive o último grito de revolta e o derradeiro exercício de atenção, contra as ideologias dominantes e contra as demagogias. (...) A dissonância das vozes, a abertura pela qual a questão se insere e define um movimento não ocluso, nisto se mantém a expressão como um desprendimento e um ato singular. (...) A obra de arte, grito do artista, se destaca da produção massificada fadada ao consumo irrefletido, para tornar-se questão ou espírito encarnado na forma estética autônoma. Autonomia que é sua não-reprodutibilidade” THEODOR ADORNO

Introdução: o cinema e a filosofia

As epígrafes supra-escritas mostram nossos principais referenciais teóricos (Lévinas, Deleuze, Cabrera e Adorno), bem como as noções fundamentais que perpassarão nossa análise: rosto-enigma ou sujeito-enigma, questão ou situação crítica, expressão criativa, Desejo do Infinito, conceito-imagem e logopatia. Trabalharemos os impasses e as possibilidades filosóficas da imagem em tensão com a questão irredutível da subjetividade. Indagaremos, destarte, por uma imagem dialógica ou crítica, e pela vinculação entre ética e estética no seio do problema. Oporemos programa e problema, interrogação e entretenimento, forma e expressão. Tatearemos os vestígios inquietantes de um enigma não-representável na imagem em movimento, buscando encontrar a “virtude cinemática do pensamento”. Como educar, filosoficamente, pela imagem? De que modo ensinar filosofia indo ao cinema? Sigamos.
Este artigo é um passeio pelas eiras do cinema e da filosofia, chegando exatamente no encontro de ambos onde, encruzilhada crítica, nós seremos agudamente interpelados. Não por uma esfinge monstruosa, sob auspícios de sermos devorados, mas por um rosto_ questão encarnada_ que expressa um enigma. Rosto que pode ser o de um aluno que, insatisfeito com a repetição de ladainhas eruditas e com a deglutição de “pílulas sapienciais”, indaga e desconcerta um tradicional professor de filosofia. Então, perfurando o quadro conceitual rígido_ que pretende lidar, muitas vezes com “tábulas rasas”_ o homem-estudante obrigará o homem-professor a largar a régua e o giz e o alfarrábio para responder como Homem. Não retornamos aqui a um “espanto”?
No rosto de cada homem fulgura um desejo de expressar. Expressamos o que somos e nos tornamos mais do que somos quando postos em situação crítica. As questões que nos atingem no âmago têm o poder nos despertar e nos pôr em movimento. Talvez aí esteja a melhor definição de Filosofia: desejo que brota da questão e motivação crítica do pensamento desperto. Despertar é já mover-se em direção a quem nos interpela respondendo a um apelo. O chamado é traumático por atingir, inquietante e agudo, a “carne do pensamento”, ou seja, toca e penetra sensivelmente o sujeito. De fato, “deve haver uma dor que é mãe da sabedoria”.
Não é trato de teorizar a dinâmica dos momentos ou calcular os instantes, mas sim “pensar em movimento” e viver o tempo que nos transcende pelo advento de um infinito. Abertura é mais que um conceito filosófico, é a possibilidade da filosofia. Eis, cremos, a tarefa da Filosofia: fazer nascer o “amor pela sabedoria” a guisa de atenção crítica, hospitalidade e interpelação constante com o rigor de uma responsabilidade crescente. A filosofia deve educar o homem, salvaguardar sua dignidade e ensinar-lhe a exercer sua humanidade e criticidade. A cultura fornece ferramentas, metáforas e meios para tal. Filosofar é um exercício de atenção que problematiza enigmas[5] e os expressa na sua articulação lógica e implicações existenciais: suscita o desejo e a reflexão.
Imersos numa era em que somos bombardeados constantemente por imagens aberrantes, em que o caleidoscópio iridescente da indústria cultural (ouçamos os ecos da teoria crítica de Adorno) deslumbra e engana, onde o ruído (DELEUZE[6], 1992, p. 56-58) invade sem avisar o templo sensível de nossos ouvidos abalando nossos tímpanos, onde a teia global das telecomunicações e da mídia já fixou seus signos e esculpe seus ídolos de néon a todo instante, enfim, como filosofar em tempos nos quais é difícil focar a atenção e aprofundar a reflexão? Nesta época sucedânea ao naufrágio de ideais e sonhos, mundo ferido do pós-guerra e pós-crise, e de verve tecnológica potenciada por novos padrões de comportamento, o que “os ventos das musas e dos cientistas” trazem de novo para a filosofia? De vento em popa, o cinema traz seus ouros do oceano agitado à casa sempre aberta de um pensamento nômade[7].
Retomando, por exemplo, as considerações de Sergei Eisenstein (O Sentido do Filme, p.9-25), grande cineasta e teórico cinematográfico russo, o nascimento do cinema coincide com a “desintegração do mundo” em meio ao absurdo da guerra e com a conseqüente crise das artes clássicas (pintura, teatro, literatura, etc). Aflorando no vértice do então maior avanço tecnológico (dos automóveis aos mísseis nucleares) e do maior fiasco da humanidade (duas horríveis guerras mundiais inéditas, em menos de 50 anos e na cauda da belle époche), o cinema procurou se posicionar crítica e agudamente denunciando horrores e, mediante imagens vivazes e dinâmicas, re-montar esteticamente o mundo des-montado pela violência abominável perpetrada, asseverando uma responsabilidade que define a natureza ética do homem como não-indiferença (A Natureza Não-indiferente, 1978). Nisto Lévinas e Eisenstein se cruzam.
Aliás a montagem já serve de metáfora para o caráter orgânico e significante da vida, o qual, em meio a bombardeios e esquartejamentos (lembremos Guernica_ de Pablo Picasso e O Grito_ de Edward Munch), sucumbia como argamassa ante um aríete insano. A própria técnica cinematográfica se engajou na tradução e reinterpretação “cinemagética” do real, com novos conceitos estéticos (mas não só) e incorporando o movimento e o tempo_ o que foi tema dos estudos bergsonianos e deleuzianos_ no “fluxo total das cenas” ou “enredo-drama-narrativa”. O movimento é o tempo?
Jacques Aumont, em sua obra A Estética do Filme, analisa a especificidade da cinematografia e sua técnica, mostrando como o filme funciona de modo a ser uma representação sonoro-visual vivaz que integra espaço-tempo nas noções de profundidade, plano e encadeamento; também acentua a importância da montagem do filme, da narratividade, impressão de realidade; tematiza a heterogeneidade e pluriperspectiva da linguagem cinematográfica; e conclui analisando a situação do expectador frente ao filme, levando em conta empatia e perturbação. “Reconstruir a realidade fragmentada e acrescentar-lhe algo mais”. O tempo seria um excesso[8]?
Além disso, se observarmos as vertentes estéticas que se tornaram paradigmáticas ou cognitivamente desafiadoras tais como expressionismo, impressionismo, cubismo, surrealismo, hiperrealismo, acionismo, etc, detectaremos em cada uma, certo modo sui generis de “imaginar”, “reconstruir” ou “ampliar” a realidade. A arte parece fornecer este aparato crítico e sensitivo-expressivo sob ângulos multifários. O cinema integra e dinamiza incontáveis correntes na especificidade de sua técnica e na sua dinâmica temporal-imagética, como uma linguagem nova e de signos próprios (DELEUZE, 1992, p. 62-8).
Perguntar-se-á, com toda razão, (e o fazem Adorno e Lévinas), se o cinema, e toda representação difusa numa rede de participação coletiva, não enfeitiçariam e aprisionariam o pensamento na fixidez plástica da imagem ou na rotina consumista de uma experiência massificada . Há perigos, certamente, atestados desde o filme-propaganda nazista A Reconquista da Esperança até os “fast foods” hollywoodianos; contudo, o cinema não deve ser prontamente negligenciado ou posto no ostracismo filosófico: a crítica pode se valer da arte, sem se reduzir a ela, e, decerto, a voz que desencanta[9] e exige pode atravessar as imagens como um Rosto questionador e sério[10].
Não obstante, tendo a filosofia sempre colhido da cultura as metáforas que auxiliam na enunciação, recepção e compreensão de problemas ou elaboração de conceitos, então, o que nasce do encontro entre filosofia e cinema? Além da filosofia do cinema é possível fazer cinema da filosofia (“filmar idéias”) ou filosofar cinematograficamente? Salientamos que de modo algum se pretende reduzir um ao outro ou fazer analogias incautas, mas indagar de que maneira as questões podem ser veiculadas e trabalhadas no “fluxo temporal reflexivo ou meta-inflexivo das imagens em movimento” (do étimo grego cinematos + graphéin: imprimir o movimento ou mover as imagens). Deleuze assevera que há uma pedagogia da imagem:

Enfim, a imagem torna-se pensamento, capaz de apreender os mecanismos do pensamento, ao mesmo tempo em que a câmera assume diversas funções que equivalem verdadeiramente a funções proposicionais. (...) O cinema é todo ele modulação (...) Todo novo meio lhes serve (...) O olho não é a câmera, é a tela. Quanto à câmera, com todas as suas funções proposicionais, é antes um terceiro olho, o olho do espírito. (DELEUZE, 1992, p.70-2)

Filtremos do éter que a isto cerca, até agora, o que Deleuze diz sobre a “perspectiva teórica da câmera” fixando-o como um “olhar reflexivo” que flui com e acima de, se destaca e contempla distanciadamente, se projeta para fora do quadro (meta-) e depois se volta sobre a cena como um mergulho em si (-inflexão). Perceberemos ali um “olho do espírito” tentando nos mostrar um problema e um conceito, alarme ou “chamada de atenção” que já é afecção e interpelação? Haveria um rosto que olha_ ou olhou deixando um vestígio significante_ apontando para um enigma (sendo ele, por princípio este enigma) que extrapola imagens e enredo? É de Lévinas que a indagação procede. Como o cinema pode educar o pensamento? De que maneira a razão pode ser sensibilizada e provocada pela afecção da imagem que porta questões?

Logopatia, cinema e educação

Não seria o “movimento para além” o que caracteriza o pensar? Indagação que carrega um ensinamento. O pensamento humano sempre se desenvolveu no seio das culturas a partir dos recursos e dos meios de expressão que esta lhe ofertava. A filosofia como atitude apurada e penetrante de trato de questões no escopo da vida humana e da existência no mundo, lançara mão, perspicaz ou criticamente, de imagens, metáforas e alegorias colhidas do manancial cultural (teatro, pintura, poesia, música, mitologia, etc).
Pensar sempre pressupôs pôr-se em movimento na direção de uma verdade ou valor “desejáveis”, a partir de um “espanto” que insere um problema e suscita um despertar. O Cinema surge, pois, como uma “revolução expressiva” que reúne em si todas as demais formas de arte supracitadas e as coordena numa dinâmica que envolve um chamado “a pôr-se no lugar de”, “a perguntar-se por” e a “pensar sobre” enquanto se vê um vida mover-se num Enredo que “poderia ser o seu”; não obstante, esta “coordenação” traz em seu seio um Enigma, um elemento questionador que suscita uma “desordem” (espanto, trauma, inquietação) e faz irromper o Desejo (“Eros filosófico”) que visa o “para além” e o “novo”. Resposta dialógica a uma imagem crítica?
A essência filosófica do pensar é exatamente esta energia ética e crítica que convoca o homem a pensar em e ir além, respirar no movimento inquieto de sua alma, vibrar com as questões que remetem ao “humano” que “nos interpela” por traz de cada produto artístico e cultural. O espírito humano vive aí uma “cinemática” de imagens que trazem em si um conceito (conceito-imagem), de questões que exigem uma resposta (pela invocação do outro homem) e de enigmas que, no fundo, moram no interior de cada indivíduo e cada obra. “Sofrer a presença de” ou “sofrer por” que marca o teor de uma logopatia, de uma afetividade e sensibilidade que dão impulso à razão e ao discurso, que abrem espaço para o diálogo com a obra (e com seus personagens e autores, através dela). “O pensamento visa um além” que é muito próximo: rosto.
O ensino de filosofia_ que segundo Kant é, sobretudo, “ensinar a filosofar”_ não deve se alienar deste “nicho fecundo” que é a cinematografia, pois, além de objeto pedagógico e recurso didático, esta última oferece um campo heurístico e um “alarme estético”_ assaz úberes_ para o desenvolvimento humano geral e da sensibilidade crítica. Todavia, e o mais importante, o cinema é o novo produtor de metáforas e linguagens de que o pensamento se vale para ultrapassar-se e inspirar reflexões mais profundas e atitudes mais conscientes. Metáforas além da craquete e da câmera.
Este artigo pretende abordar estes temas dentro de uma proposta de trabalho que vincula Cinema, Filosofia e Educação; encetando reflexões teóricas e práticas, e esboçando métodos e técnicas que concorrem para tornar efetivo um uso filosófico-pedagógico das “obras cinematográficas”. Nossos principais referenciais serão Júlio Cabrera, Theodoro Adorno, G. Deleuze e Emmanuel Lévinas. De Cabrera utilizaremos a obra “O Cinema Pensa”. Os subtítulos que seguirão serão centrados na contribuição de cada pensador, e, por fim, concluiremos com um esboço metodológico e esquemático do proferido, para fins de catalogação crítica e análise filosófico-pedagógica de filmes ou afins. Estas linhas e croquis são frutos de experimentos e reflexões efetuados na catalogação e na atividade em sala de aula, junto de nossos “difíceis interlocutores”.

Júlio Cabrera: racionalidade logopática e conceitos-imagem

Estávamos nós, então acadêmicos hiperatentos e falantes do curso de filosofia, numa empreitada constante_ não purificada de certo diletantismo_ que consistia em catalogar e comentar filosoficamente obras cinematográficas várias quando nossa orientadora, então professora e amiga, nos apresentou um livro com um título instigante: “O Cinema Pensa”. Sorrimos com a satisfação e o anseio de crianças curiosas. Contávamos então com cerca de trezentos filmes, vinte documentários e diversas séries e animes na nossa balbuciante lista. Cada item engravidava com uma média de quinze a cinqüenta linhas inspiradas e revisadas constantemente. Tarkosvsky, Cronnemberg, Kurozawa, Antonioni, David Linch, etc. Faltava-nos unidade conceitual e metodológica. Fotocopiamos o prefácio, lemos e depois fomos dissecar o resto.
No seu prefácio Cabrera já direciona o olhar do leitor sobre o pático que motiva o lógico, sobre o logopático da imagem cinematográfica. Declara: “a noção de logopático, centro conceitual de minha reflexão cine-filosófica, constitui, de certa forma, a confluência do analítico e do existencial” (CABRERA, p. 13). A dor de existir, a afetividade e a traumaticidade da existência condicionam a articulação do pensamento e seu sentido. O cinema facilitaria, dentre todas as formas da arte, a expressão do enigma e da desordem fundamental da existência humana. Pois “as imagens parecem vincular conceitos e explorar o humano de maneiras mais perturbadoras do que a lógica e a ética escritas” (p.13). Apesar do consumo massificado, “o cinema pode esclarecer e liberar”. Cita Nietzsche, Kierkegaard, Heidegger, Marcel, e outros, como atestadores de uma racionalidade logopática ou antecipadores, na filosofia, da metáfora cinematográfica que “pensa no tempo das imagens excessivas e inquietantes”.
A forma estética do filme, em oposição à métrica frasal da escrita, articularia e veicularia conceitos-imagem por oposição aos conceitos-idéia (CABRERA, p.20-3). Os conceitos-idéia confiariam no poder de abstração e imaginação dos indivíduos, dispersando, conforme o caso, o impacto emocional de uma relação direta com uma “imagem inquietante”. Os conceitos-imagem, por sua vez, veiculariam uma questão vívida e trariam consigo a torrente emocional que animaria uma determinada situação crítica dramatizada. Estes últimos não viriam substituir o real ou o exercício da indagação por uma duplicata fotogramada, mas, bem pelo contrário, afetariam e aproximariam o expectador de uma questão concreta irredutível à imagem. O conceito-imagem possui um valor heurístico e crítico, como que desafiando a ter “a experiência de...”, chamando a responder a um enigma próximo, “encaminhando” da trama ficcional para a situação real. Uma sensibilização crítica para as questões humanas universais?
Por aí a trilha se aprofunda. O impacto emocional[11] se distingue do efeito dramático, tanto que os acontecimentos que mais nos tocam nas peripécias de um enredo qualquer são os que, opostamente ao panorama interpretativo de uma cena, mostram um sujeito singular que sofre e expressa uma inquietação profunda ou um rosto demasiado enigmático. A empatia se exerce sobre um excesso de sensibilidade que, paradoxal e retroativamente, aumenta a inquietação e excede a comparação. O “poderia ser eu” sendo atravessado por um “ele é um mistério diferente de mim”. Daí que a universalidade do “poderia acontecer com qualquer um” traz consigo o “mas eu não sou qualquer um”. O questionamento acorda o sujeito para sua condição humana.
Os conceitos-imagem não são categorias estéticas, mas questões veiculadas por imagens ou revestidas de metáforas no fluir de um filme. O conceito é, certamente, definição e apropriação de uma realidade na sua inteligibilidade; não obstante, o conceito-imagem, por sua abertura crítica e seu impacto emocional, remeteria a uma inteligibilidade não esgotada pela teoria ou acabada num sistema. “A linguagem do cinema é inevitavelmente metafórica” (CABRERA, p.26) e “o conteúdo filosófico e crítico de um filme é processado através de imagens que têm um efeito emocional esclarecedor” (p.27). Daí a racionalidade logopática do cinema.
A metáfora remete sempre à uma situação crítica e à articulação existencial das tentativas de resposta á uma questão contundente. O conceito-imagem de um filme pode ser rastreado e enunciado pelas metáforas ou alegorias que apontam um problema de fundo. A logopatia vincula conexões lógico-analíticas com uma situação hermenêutico-afetiva e, no cerne da tensão entre ética e estética, assinala uma questão inspiradora de reflexão. O afetivo ou pático seria, na ecografia dos dizeres heideggerianos, um “modo de acesso ao mundo e aos outros” (CABRERA, p.16-7), ou, de outro dito, o modo da sensibilidade existencial do ser-no-mundo. Entretanto, a imagem cinematográfica imbui-se de cores no terreno das virtualidades, no campo das possibilidades (irrealizáveis ou efetivas), como que integradas na arquitetura de um mundo virtual formando uma tela total onde a imaginação humana pode projetar seus maiores delírios ou as ironias de sua existência, como uma simulação convincente tornada mediania das relações com o real (BAUDRILLARD, p.20-30). Cabrera convida-nos a ver além da simulação, no seio do problema, na figura exemplar ou na imagem provocadora. “Será preciso ver como essa simulação nos situa em relação à realidade”. (CABRERA, p.37)
Neste trem poderíamos anexar muitos vagões heurísticos (como fotogramas na montagem de um filme). De que se tratam as possibilidades? Elas se inscrevem nas perguntas típicas que se iniciam por um “E se...” ou um “Poderia ser...” ou “Será que isso...”, etc. Entrar num filme ou acolher a proposta do cineasta é já ser atingido por questões veiculadas por palavras e imagens, sendo obrigado ou solicitado a refletir sobre determinado tema num horizonte de sentido, acessando certo conceito-imagem. A solicitação talvez não nos venha tão somente do enredo mas, sobretudo, de alguém ou de um sujeito-enigma. Mas aqui já estamos mais em Lévinas que em Cabrera.
O cinema, filosoficamente pensado e utilizado, deve promover uma sensibilização crítica. “Exercendo este efeito de choque, de trauma sensível, de franca agressividade demonstrativa, é possível que o espectador tome aguda consciência do problema, se sensibilize, como talvez não aconteça lendo um frio tratado sobre o tema” (CABRERA, p.38-9). Marca traumática da questão que atravessa as imagens e confere força demonstrativa e provocadora às mesmas. O conceito-imagem articula imagens dialógicas energizadas por uma questão que problematiza um enigma de fundo. Novamente avançamos para além de Júlio Cabrera.
Amarrando-nos ao mastro, como Ulisses resistindo ao canto das sereias, e ancorando no que mais interessa agora, seguimos. O cinema nutre a reflexão de espanto e escândalo com imagens prenhes de seiva emocional e alarmes do atino, pois, ele “vive do assombro, é como um olho seletivo que vai sendo surpreendido a cada instante...interessando-se pelo surpreendente, pelo extraordinário” (CABRERA, p.34) e é essencialmente provocador e desconstrutivo mais que remodelador e instrutivo. “O cinema nunca confirma nada, volta a abrir o que parecia aceito e estabilizado” (p.34).
Aliás, Cabrera enumera alguns dos apanágios da técnica cinematográfica cujo sabor agrada, e muito, filosoficamente_ tais como: a) pluriperspectiva como um manejo ilimitado dos pontos de vista; b) maleabilidade espaço-temporal como um manejo elástico e indefinido das coordenadas geométricas e cronométricas num campo de ação; c) o corte cinematográfico ou manipulação focal-relacional, em que se maneja conexões e destaques. Tais recursos perpassam a especificidade da imagem cinematográfica. Nisto “a subjetividade e objetividade são enriquecidas e potencializadas ao extremo e, ao mesmo tempo, problematizadas e dissolvidas em sua pretensão de constituir uma distinção nítida”. (CABRERA, p.30-4). O cinema é abertura, desordenamento e reordenamento como uma flexibilidade estético-conceitual enorme. “A imagem cinematográfica não pode mostrar sem problematizar, desestruturar, recolocar, torcer, enfatizar, torcer, distorcer.” (p.33). Evidentemente Cabrera é otimista quanto ao potencial cinematográfico para o pensamento crítico-conceitual; outros, como Adorno e Canevacci, têm ressalvas.

Theodor Adorno: crítica cultural e estética da emancipação

Expoente eminente da aclamada Escola de Frankfurt_ na qual constam também Walter Benjamim, Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Louis Althusser e Erich Fromm_ foi uma das principais vozes contra a dominação ideológica e contra a massificação promovida pela indústria cultural. Os frankfurtianos_ intelectuais, filósofos, psicólogos e sociólogos influenciados pelos escritos de Marx e Freud_ tinham como traço comum o desenvolvimento de uma teoria crítica da cultura (em todos os seus níveis, sobretudo político e epistemológico) que denuncie a racionalidade tecnocrática e a mecanização instrumental do homem. Defendiam o despertar de uma razão emancipatória, com base na crítica da dominação e do esclarecimento reflexivo (aufklärung), que estabeleceria o diálogo e o consenso aberto entre indivíduos racionais e livres. Dentre todos, Adorno foi o que voltou mias ativamente seus olhos sobre o papel da estética. Inicia-se a crítica da produção cultural por uma estética da emancipação da obra de arte e dos indivíduos através dela.
Neste sentido, escreveu Dialética do Iluminismo (1947), A Personalidade Autoritária (1950), Dissonâncias (1956) e, por fim, Teoria Estética (1968). Esta última obra nos interessa. Em primeiro lugar, Adorno determina o conceito de técnica_ dentro do que ele denomina indústria cultural_ na era da reprodutibilidade serial, como uma homogeneização e uma instrumentalização que aprisiona o indivíduo no “circuito industrial” e elimina a distinção entre a peculiaridade da obra de arte (expressão e criação) e a vulgaridade reprodutiva do sistema socioeconômico (consumo e troca). Como a dinâmica econômica é exercício de um domínio ideológico das condições materiais, as mídias (rádio, televisão e, sobretudo, o cinema comercial) se prestariam a tal dominação. A ideologia que sustenta a indústria cultural se perpetuaria por uma idolatria da imagem e por uma imantação mítica do fazer técnico. O entretenimento distrairia das questões concretas, e, por conseqüência, o programa esconderia o problema. A emancipação do homem se daria pelo exercício da crítica, da interrogação e da atenção. Seria preciso resgatar o valor da obra de arte.
A obra de arte se constituiria um grito derradeiro em nome da liberdade que, enquanto expressão liberada, se separa do autor ganhando um caráter autônomo e um poder de interpelação contínua do público. Ela oporia à práxis brutal da sobrevivência e dos jogos políticos uma autonomia estética com força emancipatória. Seria ela uma diferenciação, uma aspiração à perfeição num mundo desintegrado, um ato de criação que busca uma definição além das determinações culturais. Ela convoca os indivíduos à pensá-la, questiona-la e aprecia-la; não somente consumi-la, irrefletidamente.
A exemplo disso, o italiano Massimo Canevacci em seu denso Antropologia do Cinema: Do mito à indústria cultural, analisa os aspectos psicológicos, simbológicos e sociológicos da “imagem em movimento”. Fá-lo, sem embargo, sob a aura mestra de Frankfurt em interlocução com Nietzsche, Freud, Jung e Lévy-Straus. Centra-se na enunciação hipo-estrutural da ideologia, tomando-a como “uma facciosa particularidade que tem a ambição de se dimensionar numa hegemonia universal” (CANEVACCI, p.7) cuja força provém de um atavismo aliado a um instinto de gerar uma duplicata virtual como dilatação no tempo e expansão do espaço, no qual a ilusão se exerce como magia (p.8-12). Nem totalmente falsa, nem totalmente verdadeira, jamais absoluta, a ideologia tal como a idolatria se articulariam na proto-contradição entre sujeito e objeto na qual, por força do encantamento poético promovido pelo mito (imagem universalizada por participação social e elevada à força simbólica do arquétipo), o sujeito se reifica absorvido em meio às coisas-mercadorias (p.15-8). Haveria, portanto, a necessidade imperiosa de uma crítica que diluísse a viscosidade das coisas imantadas poeticamente e perfurasse as representações miméticas coletivas para que, destarte, os objetos surgissem como tais para um sujeito separado e liberado do “feitiço faccioso” (p. 20-4). Para Canevacci esta crítica deveria ser reativada filosófica e antropologicamente, mediante a análise dos símbolos e alegorias em busca dos problemas e dos sentidos que jazem ocultos ou cristalizados em máscaras poéticas. A crítica é reanimação do sentido no seio de uma reflexão atenta e expressiva.
Assim, traduzindo para nossos anseios, quanto mais um filme expressar criatividade e diferença, quanto mais concentrar a energia de uma questão e o poder de exprimir, tanto mais adquirirá a força emancipatória de uma estética crítica. A obra cinematográfica deverá suscitar a reflexão, chamar a atenção e provocar decisão livre e consciente de um pensamento desperto. Certamente podemos objetar alguns aspectos desta teoria pedindo socorro à Lévinas e Deleuze ou, principalmente, à Cabrera; não obstante, queremos conservar as noções de expressão criativa, estética da emancipação e exercício da atenção. Indagação pertinente: qual a inserção crítica deste filme ou daquele na época de sua produção e hoje em dia, enquanto o assisto? Também conservamos a análise de símbolos e alegorias, para fins tanto críticos quanto ilustrativos. Com isto seguiremos dialogando com Deleuze.

Gilles Deleuze: heterogeneidade, gagueira criativa e pedagogia da imagem

A subjetividade é a expressão e produção de heterogeneidade. Eis a tese maior da filosofia de Deleuze sobre o lugar do indivíduo no seio da cultura. A heterogeneidade do sujeito expressivo se opõe fundamentalmente à homogeneidade do sistema controlador. O Eu como produtor de diferença_ agente criador e transvalorador problematizante_ resiste à sociedade de controle_ mantenedora de uma ordem estabelecida, censora total e produtora de comandos programáticos. Expressão versus engajamento, criação against força de trabalho, diferença contra repetição.
Lobrigam-se nesta antítese tensa as silhuetas de Friederich Nietzsche (übermensch e transvaloração dos valores) e de Baruch Espinoza (conatus essendi e esse propendi). Haveria uma dialética aberta e uma tensão permanente entre a diferenciação individual e a manutenção da ordem social. Recorda a dialética nietzschiana da transvaloração (Assim Falou Zaratustra) em que o homem vulgar_ como camelo_ aceitaria tudo mimeticamente, mas, tornando-se leão, revoltar-se-ia e tudo questionaria num processo heurístico e dionisíaco de destruição e liberação, e, por fim, como criança nova ou “mais que humano” (übermensch) por-se-ia a criar e expressar parindo de si a diferença valorativa. Em contrapartida, pontua a postura espinoziana de persistência no ser e ser em atualização como a recorrência e repetição de uma tendência interiorizada. Sujeito desejo de expressão e persistência na diferença? A resistência e a singularidade do Eu seriam esta força heterogenitora?
Estas teses e considerações aparecem nas páginas de Diferença e Repetição (1988). A dimensão crítica e estética da obra de arte (produção da diferença) confrontaria a dimensão político-econômica da mercadoria cultural e midiática (repetição de comandos). A voz individual (DELEUZE, 1992, p. 56) ou a expressão heterogênica seria proferida como que numa gagueira criativa (p. 58-62) em que se efetivaria uma interrupção diacrônica_ pela acolhida da e perturbação na questão_ e um novo esforço por expressar um excesso, por dizer algo diferente; tentativa de estabelecer uma “linha de fuga ativa, o tempo todo quebrada e reatada, em ziguezague, subterrânea,” (p. 52) como um “acréscimo excessivo” (surplus) efetuado a cada expressão e relação, como o “E...e...e...e...” em que se produz a diversidade e a multiplicidade fecunda (p.60). Isto é enunciado em Conversações (1992).
Uma reunião de entrevistas concedidas à Cahiers du Cinema, na qual constavam Três Questões Sobre Seis Vezes Dois, Sobre a imagem-movimento, Sobre a imagem-tempo, Dúvidas sobre o Imaginário e, por cabo, Otimismo, Pessimismo e Viagem. Na primeira das conversações supracitadas, Deleuze analisa a personalidade de Jean-Luc Godard, como um caso paradigmático de genialidade prenhe da tal “gagueira criativa”. Cineasta e crítico de cinema, Godard se caracterizaria por “uma solidão múltipla e fecunda, povoada de questões” (DELEUZE, p.51); ele próprio seria um enigma fascinante. A capacidade de produzir e exprimir idéias em forma de questões, parecem ser o grande talento e o ensinamento cinematográfico de Godard (p.52-3).
O cinema teria, como demonstra Godard, um potencial crítico e criativo imenso. A imagem cinematográfica é, simultaneamente, imagem-movimento e imagem-tempo; ou seja, incorpora na sua forma estética um fluxo de imagens que temporalização do que se apresenta na tela. As conexões, as surpresas e as dobras no fluxo temporal constituem “uma substância de expressão que tem sua própria corrente” (DELEUZE, p. 59). A cinematografia seria a veiculação estética e a metáfora expressiva da diacronia do tempo como duração, ou do “pensamento em movimento”, atravessados pela diferença, produtores da diferença, na proliferação de imagens prenhes de questões e imagens-gérmem de idéias (p.65-9). As fronteiras e as ligações ocultas entre as imagens revelariam sua força de significação, onde um excesso se pronuncia, “linha ativa e criadora” onde_ como nas sinapses cerebrais_ um relâmpago e um trovão demasiados se manifestam (p.61). Há um caráter orgânico e evolutivo no cinema.
Seria ainda preciso realizar uma taxonomia no zoológico das imagens, pois cada qual possui seu gênero, seu filo, sua espécie e sua família. Uma tipologia imagética e uma categorização de seus caracteres intrínsecos deveria respeitar o critério biológico. (DELEUZE, p.62-4). No cinema as imagens são animadas, animais, vivas, semoventes e entre-móveis; ele esta construído sobre a base da imagem-movimento. A imagem-movimento incorpora percepção, ação e afecção numa corrente substancial que unifica numa macro-imagem incontáveis imagens funcionais, é unidade que não pode ser pensada sem movimento, e, adido, o movimento é expressão do tempo (p.63/67). O que a imagem mostra? De que modo nos atinge? Para onde nos conduz? Que signos ela articula? As imagens precisam ser criadas e evocadas, “os signos remetem sempre para a assinatura” de alguém (p.65). O psiquismo tem voz no tempo que move as imagens, o tempo é expressão do psiquismo ou da vida, como o movimento é expressão do tempo (p.65-8). Pensamos temporalmente, em movimento, indo além das imagens que mobilizamos. Haveria um rosto a insinuar-se nas brechas dos fotogramas? Lévinas imiscuí-se aqui por um atalho que logo vamos trilhar paulatinamente.
A imagem pode ainda comportar-se como cristal ou caleidoscópio. A imagem-cristal articula intrinsecamente, na sua forma atual, um sem-número de imagens virtuais (DELEUZE, p. 69-70). Quando uma questão ou intenção significante incide_ como “facho de luz” _ numa imagem-cristal, o virtual se atualiza em novas formas insuspeitas. Esta caleidoscopia da imagem vêm encontrar, no cinema, as funções “proposicionais” da câmera. Articulando proposições e problemas, a imagem cinematográfica adquire uma função pedagógica. Anuncia-se uma pedagogia da imagem (p.70). É possível ensinar através da imagem, não a imagem.
A abertura e o extravasamento definem o cinema. O infinito aberto por excelência é o tempo. (DELEUZE, p.73-4). A cinematografia anunciaria o auto-movimento e a auto-temporalização da imagem. O tempo infinito promove uma transversalidade e uma tarefa heurística que atravessa sistemas de imagem, pois é marcado por questões e rupturas diacrônicas em que sujeitos interpelam e se expressam, produzindo heterogeneidade (p.80-1). Lévinas e Deleuze se aproximam novamente. A tarefa crítica seria interpelação e produção de conceitos, ou, dito metaforicamente, produção de sinapses. “O cinema inteiro vale pelos circuitos cerebrais que ele instaura, justamente porque a imagem está em movimento” (p.78). Pode-se falar de sinapses cinematográficas, como conexões inteligíveis e funções de pensamento sempre renovadas (p.79). Reinvocando Eisenstein, a imagem está ligada ao todo e toda questão veiculada por novas imagens transforma o todo em suas articulações internas.
Perguntas metodológicas: Que ressonâncias e dissonâncias se produz na articulação das imagens? Como signos, o que elas significam? Em que conceito elas convergem? (p.83) Que pontos singulares elas juntam? O que elas desencadeiam e reencadeiam? Que segredo se esconde atrás da porta que elas abrem? O que elas acrescentam de novo na compreensão de um problema ou conceito? Mantemos aqui, respeitando Deleuze, para a metodologia, as noções de acréscimo pedagógico, taxonomia imagética e transversalidade-limitrofia. Vamos ao Outro.

Emmanuel Lévinas: enigma, responsabilidade e pedagogia do rosto

Ao penetrarmos na forma buscando a fonte do sentido de uma obra de arte, nos depararemos com um Rosto nos interpelando. Pelo menos, nisto se fia o fenomenólogo e meta-crítico francolituano Emmanuel Lévinas. Para ele a filosofia primeira e a fonte de toda crítica e interlocução é a ética. Ela suscita, na Expressão do Outro como Rosto ou Enigma que faz face, como exterioridade absoluta, um Dizer que extrapola e desfaz representações (LÉVINAS, 1980, p.270-7). É uma abertura temporal à alteridade, fecundação. O tempo é significativo na diacronia do encontro inter-humano (1997, p.205-240). Antes da Cultura e da Estética, a significação se situaria na ética (p.229-35).
A proximidade da alteridade desborda em inadequação, inquietação e infinição. A relação como o Infinito (o excessivo, o desmedido) é Desejo do Outro, busca ou ânsia do Enigma que provoca sem ser absorvido e possuído (LÉVINAS, 1998, p.208-16). Eis a desordem fundamental, trauma e questão, que nos inspira e critica. Dissonância e perturbação que é chamado à uma “nova ordem”, discordância que se torna problema, crítica que se torna responsabilidade e linguagem (1998, p.247-60). O abalo ético é choque de duas ordens absolutamente outras, sujeitos irredutíveis, absolutos no face-a-face, inquietantemente próximos. “Possibilidade de vibrar”, vida do espírito, vestígio de uma desordem que exprime um tempo e uma intriga que normas ou conjuntos não abarcariam: excesso de sentido, presença do infinito (p. 250). “Vestígio ainda quente, como a pele do outro...o próximo é posto à minha responsabilidade” (p. 281-2).
“Encontrar um homem é ser desperto por um enigma” (LÉVINAS, 1998, p.151). Há aí uma relação com a transcendência, com a questão que advém da altura, é traumatismo que atinge uma passividade que se inverte em responsabilidade. Para nossos propósitos, significa: como encontrar o homem ou sujeito-enigma por trás das imagens? Qual a raiz do trauma ou da questão que nos “abalou” ao assistirmos o filme? Ao assistirmos o filme, por quem nos sentimos próximos e responsáveis?
A identificação do sujeito-enigma na trama é importante para encontrarmos o sentido logopático da interpelação. Nisto entra a noção de Rosto. “A revelação de um rosto é um para-além da forma. O rosto fala. É presença viva, expressão.A manifestação do rosto é já discurso. Aquele que se manifesta traz ajuda a si próprio, desfaz a cada instante a forma que oferece” (LÉVINAS, 1980, p.53). Essa desordem, este excesso orienta a significação. Pode-se dizer que ele reúne e impulsiona toda a força crítica da questão. “Apresentar-se significando é falar. O rosto nu produz sentido. Através da máscara penetram os olhos, a indisfarçável linguagem dos olhos. O olho não reluz, fala” (p.53). O olho não é somente a tela onde se imprime uma cena, mas vida que exprime uma questão. Educar filosoficamente o olhar sobre a arte, o cinema sobretudo, é acolher o olhar que atravessa a cena. Mais do que aquilo que foi expresso, deve-se perguntar: quem e porque se exprimiu? Onde estão os vestígios de sua presença enigmática?
Uma obra de arte nunca equivale a um homem, é sempre “sombra do homem”. A forma é sempre extravasada pela interpelação. Num artigo polêmico cunhado A Realidade e sua Sombra (1948), Lévinas atina para os perigos de uma obliteração do sujeito pelo enfeitiçamento mítico das imagens. A estética seria imantada no ser colado em “sua sombra”. O papel da Filosofia, sua responsabilidade, seria, mediante a crítica e a interpelação, intervir nas imagens e acolher as obras buscando o sentido ético de sua expressão, ou seja, desejando o Rosto-enigma por trás da forma plástica, cujo Dizer pode nos inspirar e ensinar. Diante da obra, buscar, nos personagens e nas proclamações imagéticas, o autor com suas dores e questões ou o homem.
Quem nos “acena” por trás da “cena”? A crítica nasce da interpelação ética que perpassa e excede a forma estética. A realidade é ela mesma demasiada inquietante e rica de questões. Lévinas questionaria a afirmação de que o cinema é “produtor de realidade”. Não obstante, poderíamos perguntar: não seria possível que, ultrapassando o obscurecimento da “sombra”, o cinema portasse um “apelo do Outro” e a “marca do real”? Se o que motiva o pensamento e produz sua transcendência é o choque, não seria possível chocar através da arte? Lévinas insiste na distância entre arte (poética e política) e a filosofia (ética e crítica), mas deixa aberta uma porta para uma imagem dialógica que articula ética e estética.
Este é o leitmotiv de Nadja Hermann em Ética, Estética e Alteridade, e, com mais contundência ainda, de Paulo Sérgio de Jesus Costa em Ensaio sobre a Relação entre Ética e Estética: em busca de uma possível estética dialógica da imagem. É sob inspiração destes dois que nos encaminhamos para o final de nosso texto. Hermann acentua o fato interessante de que o movimento estético de interpretação e de reinvenção de conceitos remete a um movimento mais profundo_ ético_ de questionamento e inspiração. De certo modo, “os raros momentos” de surpresa e inesperado que a arte nos oferece sempre atestam uma situação crítica e paradoxal em que nos vemos confrontados com a alteridade, face enigmática de todas as significações. O sentimento ambíguo de empatia e surpresa, estranheza e proximidade na experiência estética remeteriam a uma interpelação ética. Há uma riqueza do paradoxo e um despertar na inquietude: aí se revela a desproporção da Questão.
Desproporção de um infinito que se abre e disritmia de um coração surpreendido. A musicalidade poética imantada num ritmo harmonizador_ imagens mítico-poéticas imersas na pitagórica “música das esferas”_ só se abre à Questão quanto perturbada pela diacronia e dissonância de um contato crítico com a alteridade. A surpresa, o “espanto ou trauma”, é o que insere a Questão e exige uma resposta urgente do sujeito: acusado, exigido e desperto. A estética ganha validez filosófica na medida em que dá voz à uma inquietação ética, dá voz à diferença. Deve-se buscar um tipo de imagem nas qual a vida transborda inquietude: imagens dialógicas. Elas mostram rostos e veiculam questões.
Chegamos à indagação de Jesus Costa: é possível uma estética dialógica da imagem? Para tal é preciso separar as imagens poéticas_ que se fiam no “mito” como representação coletiva_ das imagens dialógicas_ que revelam uma “presença humana” e uma voz pessoal interpelante. Isto se dá porque as imagens mais inquietantes_ dialógicas e provocadoras_ são aquelas que nos colocam em situação problemática por mostrarem um Rosto que sofre ou que expressa uma questão urgente. “Urgência que pululam na fronteira, temporalidades onde traumatismos são acirrados” (COSTA, p.174). O despertar na urgência interpelante é uma promoção da voz da alteridade no seio da imagem. A penetração crítica da questão através da imagem, como uma força estética dialógica que suscita uma simpatia pela assimetria interpessoal_ pela unicidade do outro_ como um contato surpreendente que implica responsabilidade na gravidade ética da interpelação. “A imagem dialógica tem seu sentido na tensão permanente entre ética e estética” (p.177). Cabe ao cinema, pelo seu potencial expressivo e logopático, produzir uma sensibilização ética e estética mediante “imagens dialógicas” que se concentram em sujeitos-enigmas e questões concretas mobilizadas temporalmente.


[1] Autor: Acadêmico do Curso de graduação em Filosofia Licenciatura Plena – UFSM. Em atividade nos projetos “Fenomenologia e Razão Prática” (Ph.D. Marcelo Fabri) e “Cinema, Filosofia e Educação” (Ph.D. Elisete M. Tomazetti). E-mail: cristianocerezer@gmail.com
[2] Co-autor: Acadêmico do Curso de graduação em Filosofia Licenciatura Plena e Psicologia– UFSM. E-mail: elfodassombras@gmail.com
[3] Co-autor: Acadêmico do Mestrado em Filosofia – UFSM. E-mail: adelarconceicao@hotmail.com
[4] Professora do Curso de Pedagogia – UFSM e Orientadora do Projeto Cinema, Filosofia e Educação. E-mail:

[5] Recordemos Gabriel Marcel para quem a existência é mistério, ao passo que, ser humano é tornar o mistério um problema. O outro homem encarnaria esta “presença de Deus”: chamado e enigma.
[6] Em Conversações, a pretexto de uma análise de Godard, estabelece a diferenciação entre informação, ruído, redundância e voz-grito. Haveria entre a definição teórica máxima de um apontamento (informação) e a indeterminação interferente (ruído), uma repetição transmissiva ininterrupta de comandos ou um circunlóquio-controlador (redundância); todavia, por trás disso, na medula heterogenitora do sentido, há uma gagueira criativa, um ímpeto renovado de falar e expressar a diferença (voz-grito). Expressar e estar atento, divergir e problematizar é “traçar uma linha de fuga”, como um desejo de evasão. Aproximamos aqui, cuidadosamente, Lévinas e Deleuze.
[7] Pensamento aberto ao infinito, atravessado e animado pela questão, como uma transcendência e evasão constante em relação aos conjuntos e totalidades, como um fluxo para-além da redundância do dito ou da permanência nostálgica no pertencimento a um gênero, como um modo de acolher o estrangeiro sendo expulso do conforto doméstico, como um modo de ser “estrangeiro na própria casa”. Pensamento que “traça uma linha de fuga”, espírito nômade que se heterogeniza à medida que se humaniza.
[8] Lévinas (1997, p. 205/229) retoma a noção bergsoniana da diacronia que acrescentaria o “novo” à duração da vida, mas recoloca-a na assimetria das relações interpessoais. O instante criativo do presente-devir de Bergson é substituído pela fecundidade da interpelação em que o Outro advém como rosto, questiona e inspira, produzindo a transcendência. Seria o acréscimo do tempo como linguagem e socialidade, o “E...e...e...” como gagueira criativa na qual insiste Deleuze (1992, p. 58-62)
[9] Remetemos às análises hábeis de Marcelo Fabri em Desencantando a Ontologia. Ali encontramos estudos sobre a subjetividade como enigma que expressa um Dizer, des-dizer e desencantamento da musicalidade poética da essência fixada numa imagem ou mito. Também se tecem linhas sobre a questão e o símbolo, bem como a superação da idolatria pelo sentido ético do rosto.
[10] “O rosto é excesso, insólita visitação. (...) Expressão, rosto que interpela de frente, vindo das profundezas, cortando o fio do contexto. (...) Desordem e diacronia fundamental, despertar da crítica: a discordância [dissonância das vozes] torna-se problema. (...) A nudez do rosto de frente exprimindo-se [sua voz silenciosa insinuando um inaudito]: ela interrompe a ordem. (...) Insinua-se; retira-se antes de entrar [peso não retido na viscosidade da teia]. (...) A linguagem é possibilidade de um equívoco enigmático para o melhor ou para o pior dos homens” (LÉVINAS, 1998, p. 248-55). A seriedade e retidão do Rosto como “voz” se opõe radicalmente à “caricatura do riso”. Adorno (1988) asseverava que “o riso, sereno ou terrível, marca sempre o momento em que desaparece um temor ou o respeito”. Cannevacci (1984, p. 120-25) apontava para a diversão e para descarga do riso como um embriagamento ritual defensivo que amortecia o impacto ou mitigava a gravidade dos problemas reais nas situações concretas: “rir da desgraça”. Tragamos à memória o Homem que Ri de Victor Hugo.
[11] “Esta instauração de uma experiência é fundamental para tentarmos entender o tipo de universalidade a que o cinema se propõe, segundo a leitura filosófica do filme que propomos aqui. (...) A emoção que sentimos diante do drama de um sujeito particular... se alimenta de uma reflexão logopática de alcance universal que nos permite pensar o mundo de forma geral, muito além do que é simplesmente mostrado no filme. O impacto emocional terá servido não para se prender ao particular, mas precisamente para fazer com que as pessoas cheguem à idéia universal de uma forma mais contundente” (CABRERA, p.39)

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