O GOLEM

Criação de Fábio Purper Machado.
Sobre a trajetória de uma escultura e seu sentido cabalístico.
Filmado no antigo Atelier de Escultura do Centro de Artes e Letras - UFSM.
Ao som do poema "El golem" lido pelo autor, Jorge Luis Borges.





Se (como o grego no Crátilo di-lo)
Da coisa o nome é sua idéia pura,
Nos sons de rosa a rosa é e perdura
E todo o Nilo, na palavra Nilo.

E, feito de consoantes e vogais,
Nome terrível há de haver, que a essência
Cifre de Deus e que a Onipotência
Guarde em letras e sílabas cabais.

Adão e os astros tê-lo-ão achado
No Jardim. A ferrugem do pecado
O apagou (os cabalistas contaram):
E as gerações por vir o extraviaram.

O artifício dos homens, sua candura
Não têm fim. Sabemos, sim, que houve um dia
Em que o povo de Deus ia em procura
Do Nome, em vigílias da judiaria.

Não à maneira de outras que uma vaga
Sombra insinuam sobre a vaga história,
Verde está ainda e viva a memória
De Judá Leão, que era rabino em Praga.

Sedento de saber o que Deus sabe,
Deu-se Judá Leão a permutações
De letras e complexas variações
E ao fim pronunciou o Nome que é a Clave,

A Porta, o Eco, o Hóspede e o Paço,
Sobre um boneco que com as mãos lavrou
Torpemente, e os arcanos lhe ensinou
Das Letras, e do Tempo e do Espaço.

As sonolentas pálpebras alçou
O simulacro e viu formas e cores
Sem entender, perdidas em rumores,
E temerosos gestos ensaiou.

Gradualmente (como nós) viu-se ele
Aprisionado na rede sonora
Do Antes, Depois, Ontem, Enquanto, Agora,
Direita, Esquerda, Eu, Tu, Outros, Aqueles.

(O cabalista que oficiou de nume
Ao ser enorme chamou-o de Golem;
Estas verdades as refere Scholem
Em um douto lugar de seu volume.)

O rabi lhe explicava o universo
“Isto é meu pé; isto, o teu; isto a soga”.
Conseguiu, depois de anos, que o perverso
Varresse bem ou mal a sinagoga.

Talvez houvesse um erro na grafia
Ou no Sacro Nome que articulou;
Mesmo com tão alta feitiçaria,
Falar, o aprendiz de homem não falou.

Seus olhos, muito mais de cão que de homem
E muito mais de coisa que de cão,
O rabi seguem onde se consomem
Dúbias sombras nas peças da prisão.

Algo anormal e tosco houve no Golem:
O gato do rabi, a seu andar,
Fugia. (Esse gato não está em Scholem
Mas, com o tempo, passei a adivinhar.)

Elevando a seu Deus mãos filiais,
As devoções de seu Deus as copiava
Ou, estúpido e rindo, se dobrava
Em côncavas mesuras ocidentais.

O rabi olhava com ternura
E com algum horror. Como (dizia-se)
Pude gerar este penoso filho
E a inação deixei, que é a cordura?

Por que dei em somar à infinita
Série um símbolo mais? Por que à meada
Fútil, na eternidade emaranhada,
Dei outra causa, efeito, outra desdita?

Nos momentos de angústia e de luz vaga,
Em seu Golem o olhar permanecia.
Quem nos dirá as coisas que sentia
Deus, ao observar seu rabino em Praga?


Jorge Luis Borges, 1958
(tradução de Leonor Scliar-Cabral, em Jorge Luis Borges - Obras Completas, vol. II, editora Globo, p. 286-288)

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