Estética e filosofia da arte

A partir de Gilles Deleuze
Da imagem-movimento à imagem-cristal
Artur Moura
O meu contacto inicial com a filosofia de Gilles Deleuze foi um tanto “áspero”. O livro, intitulado Imagem Movimento, consistia num filosofar sobre o cinema, porém, a distância que me separava tanto dos seus conceitos fundamentais como da sua lógica interna, dificultaram o primeiro contacto com o autor. Contudo, logo senti que se tratava de um filosofar pertinente que se queria penetrante, e de um filósofo que evidenciava um vasto (para não dizer colossal) conhecimento do todo pensado, assim como uma capacidade no mínimo invulgar de o articular.
Deleuze deixa-nos uma mensagem que me parece evidente: a verdadeira imagem cinematográfica é muito mais do que uma representação do mundo por nós pensado, do mundo por nós vivido, ela é uma busca de horizontes possíveis, de mundos a abrir que mais não são do que aquilo que nos distingue enquanto espécie: a possibilidade de ser, de nos projectarmos num ainda por vir.
O exercício intelectual que Deleuze nos propõe passa então por um esforço de não acomodação ou submissão, mas sim de projecção. Numa análise prévia podemos afirmar que a imagem cinematográfica que o autor claramente preconiza — a imagem cristal — dá-nos a pureza do momento, a concentração da eternidade que já não resulta nem pode resultar do prolongamento da percepção na acção. Há um novo elemento que impede tal prolongamento, e subordina a imagem às exigências de novos signos (que Deleuze designa de opsignos e sonsignos, ou cronosignos). Levam a imagem para além do movimento.
Esta ascensão de situações puramente ópticas (e sonoras) é fundamentalmente distinta das situações sensoriomotrizes da imagem acção e do antigo realismo. A descrição vale para o seu objecto como se este não precisasse de paisagem ou pontos de referência — a imagem cristalina é criadora de objecto — “obtendo aquelas descrições puras que desdobram [desenvolvem] uma função criadora e destruidora”1. Trata-se da construção produtora do próprio objecto, que se desprende do seu prolongamento motor. Daí Deleuze afirmar tratar-se de um “cinema de vidente, já não de actuante” (ibidem, p. 172).
É interessante como Deleuze recorre à personagem Zaratustra de Nietzsche como correspondente ao falsificador, que “por baixo do nome de «vontade de potência» substitui a forma do verdadeiro pela potência do falso, e resolve a crise da verdade, [liquidando-a] de uma vez por todas (…) em proveito do falso e da sua potência criadora…”2.
O cinema, com a conquista da imagem cristal entrou no desígnio de se colocar acima de todas as categorias — numa existência superior — para além do bem e do mal, da subjectividade e objectividade, do racional e irracional, do real e imaginário. Um cinema que é capaz de “falsificar”3 as situações e criar sempre novos possíveis, lançando-nos no horizonte da conquista do virtual e de uma nova subjectividade.
A imagem cinematográfica é agora pretexto da reflexão, mas não um pretexto da reflexão para quem está por fora — a própria imagem é pensamento — uma imagem “filosofante”. Uma imagem reflexão que já “não concerne simplesmente à imagem (como no antigo cinema que a submetia a relações métricas ou harmónicas [mediante o recurso da metáfora e da metonímia]), mas ao pensamento da imagem, ao pensamento na imagem” (ibidem, p. 233), promovendo assim (mediante a rejeição do movimento), quase que uma suspensão do mundo4 na direcção ao que já não se deixa pensar no pensamento, ou ver na visão. É uma imagem que toma por objecto o pensamento, e não (como pretendeu, por exemplo Hitchcock com a imagem mental) relações, actos simbólicos, sentimentos intelectuais.5
Estamos já muito longe da ideia de ir ao cinema para distrair ou sair de lá “todos contentinhos”…
Daí que para Robbe Grillet, a imagem cristalina constitui uma descrição que não deixa de dar lugar a outras descrições que a caracterizam — “deslocam ou modificam as precedentes” (ibidem, p. 171) — entrando numa virtualidade da imagem.
Podemos então recordar o que dizia Bergson — e que Deleuze sustenta6 — quando distinguia o reconhecimento habitual do reconhecimento atento. No último dá-se a reformulação do objecto — o sublinhar de certos contornos — para “extrair «alguns traços característicos»” (ibidem, p. 67). E em lugar de ter a coisa ou “perceber da coisa uma imagem sensóriomotriz” (ibidem, p. 68), constitui-se da coisa uma imagem óptica/sonora pura, isto é, uma descrição e já não narração, uma imagem virtual e não movimento. Daí Deleuze afirmar que na imagem cristal “não há narração (nem descrição) que seja um «dado» das imagens” (ibidem, p. 185), não se trata de “avatares do significante, por estados de uma estrutura de linguagem supostamente subjacente às imagens em real” (ibidem, p. 185), o que se passa é o desaparecimento dos signos sensóriomotores e da narração tradicional que remetia às “forças da imagem, movimento e signos sensório-motores” (ibidem, p. 185).
A narração orgânica consistia no desenvolvimento dos esquemas sensoriomotores segundo os quais os personagens reagem a situações, ou actuam de tal forma que se põe a situação a descoberto. Como se a narração aspirasse à verdade, remetesse a uma forma do verdadeiro — regime completo, fechado7 —, que implica determinado uso da palavra como factor de desenvolvimento. Um esquema que necessariamente implica “metas, obstáculos, meios, rodeios” (ibidem, p. 173).
Na imagem cristal a descrição “deixa de pressupor uma realidade e a narração de remeter a uma forma do verdadeiro” (ibidem, p. 182). Deleuze retoma o niilismo Nietzschiano para o qual o “mundo verdadeiro não existe, e se existisse seria inacessível, inevocável [impensável] e se fosse evocável, seria inútil, supérfluo” (ibidem, p. 185), “o sistema de juízos sofre uma grande transformação, porque passa às condições que determinam as relações dos quais dependem as aparências…” (ibidem, p. 187).
Já Bazin, na apreciação que faz do neo-realismo, afirmava que mais do que um conteúdo social, este assenta em “critérios formais estéticos” (ibidem, p. 11), projecta uma realidade supostamente dispersiva, elíptica, errante ou oscilante, que “opera por blocos e com nexos deliberadamente débeis e acontecimentos flutuantes” (ibidem, p. 11). Já não se trata de representar ou reproduzir o real já decifrado, dado, mas de apontar a um real a decifrar, sempre ambíguo. Mais do que um obstáculo que ainda se reduz à exterioridade do mundo físico, agora ocorre um problema: “introduz um elemento de fora (...) que constitui as suas próprias condições e determina o «caso», ou os casos” (ibidem, p. 233), que estão além das relações interiores de princípio e consequências.
O que caracteriza a narração cristalina é a ausência de um espaço “odológico” — a lógica euclidiana que era a única e estaria na base de um cinema orgânico, é agora uma entre outras — a montagem é feita segundo critérios não lógicos nem orgânicos8.
Ora bem, quando se tem uma lógica, mesmo os desvios estão previstos, e é esta previsão que o novo cinema quer evitar. Não é usual dizer-se que não havendo regras, as próprias excepções se tornam regras? Ao assumir a montagem como uma “desmontagem”, o que sobressai, o que fica valorizado é a pureza do momento, a concentração da eternidade9 (as variações não são acidentais mas essenciais) — “levam de cada vez a coisa a uma essencial singularidade e descrevem o inesgotável” (ibidem, p. 69), possibilitando uma infinidade de descrições. Ao mesmo tempo trata-se de um experiência intensa, pura, concentrada, que escapa à lógica habitual ou aos critério orgânicos. Daí a valorização do plano-sequência em detrimento da montagem. E se por um lado ocorre uma quebra da sensibilidade, por outro há um ganho de pensamento — um ganho reflexivo — do indeterminado do/no pensamento, da impossibilidade do próprio pensar, do pensamento sempre por-vir, que a mera previsão ou possibilidade lógica — do discurso previsível do regime da imagem orgânica, circunscrito a um espaço, num tempo cronológico — não contempla. O cinema já não é “feito para ser visto” ou pensado como um todo, mas (à maneira de Heidegger ou Artaud) “o que força a pensar é o «impoder do pensamento», a figura do nada, a inexistência de um todo que poderia ser pensado” (ibidem, p. 224). Não é Heidegger que, por baixo de uma forma universal, descobre um ser do pensamento sempre por-vir, um ser que não é, na medida em que só é possibilidade de ser, projecto?
Daí o apontar de Deleuze para o facto de que “não são as lembranças [imagem lembrança] nem os sonhos [imagem sonho] os que determinam estas relações crónicas, [e isto porque] as imagens-lembrança e sonho estão em vias de actualização nos esquemas sensoriomotores, e supõem o seu “ensanduixamento” ou debilidade, mas não a ruptura em proveito de outra coisa” (ibidem, p.176) (o sublinhado é meu). Significa isto que, como referi, o não prolongamento da imagem óptica (sonora) pura no movimento, não implica que entre em relação com uma imagem lembrança que a convocaria, na medida em que essa implicação (flash-back), “indica por convenção uma causalidade psicológica mas que continua a ser análoga a um determinismo sensoriomotor e apesar dos seus circuitos, de facto garante a progressão de uma narração linear” (ibidem, p. 72). Isto torna-se facilmente explicável se pensarmos que o reconhecimento atento de Bergson, quando tem êxito, não significa mais do que o reiniciar o fluxo sensoriomotor temporalmente interrompido, não sendo portanto, nem a imagem lembrança e nem o reconhecimento atento “os que nos dão o justo correlato da imagem óptica sonora”.
Para além disso, a essência do cinema já não se reduz a um estado de sonho induzido no espectador, mesmo que se dê uma participação imaginária, mas tem como objectivo mais elevado o pensamento e o seu funcionamento (Cf. p. 225). Já não se trata como pretendeu Eisenstein com o método dialéctico, de fazer visível o pensamento, mas a imagem cristal dirige-se ao que não se deixa pensar no pensamento. Mais do que denunciar um mundo, este agora é suspenso, para dar lugar ao por-vir, o impensável que já só pode dar lugar à fé.
Ora, o sonho, sendo sonho assume-se como contraponto do mundo que há. O virtual, pelo contrário, é um sonho que já não é sonho, isto é, é negação do mundo, do mudo real, do mundo em que vivemos.
Como nos refere Deleuze: “o cinema não apresenta somente imagens, envolve-as num mundo. Por isso, sempre se procurou circuitos cada vez maiores que unissem uma imagem actual a imagens-lembrança, imagens-sonho, imagens-mundo” (ibidem, p. 97).
A imagem-lembrança e a imagem-sonho, em si mesmas, são imagens virtuais, que resultam de um encadeamento com a imagem actual óptica e sonora. Dá-se então uma relação da imagem actual com outras imagens virtuais (lembranças e sonhos que se actualizam a partir do contacto com a imagem actual). Podemos considerar que este processo resulta num encadeamento.
A imagem cristal, pelo contrário, desdobra-se na sua própria imagem virtual e cria mundo, é o efeito do cristal, significa isto que constitui-se no seu próprio dinamismo puro. Já não se trata de uma situação de relação da imagem actual com outras imagens virtuais, ou de um encadeamento do real com o imaginário, mas da indiscernibilidade entre o real e o imaginário que resulta na própria imagem. Porque é uma imagem pensamento (pensamento que está na imagem).
A ideia já não é a de impulsionar uma interiorização do todo mediante a imagem — a imagem actual — para depois se exteriorizar num processo de participação imaginária (mediante o flashbak — imagem-lembrança — ou da passagem do mundo real para mundos oníricos) numa totalidade sempre aberta e que resultaria da montagem e da potência do pensamento, e em que o actual e o imaginário se discerniam. Pelo contrário, a imagem cristal constitui a imagem actual e a sua própria imagem virtual, ao ponto de já não haver encadeamento do real com o imaginário, mas a indiscernibilidade dos dois, ou como diria Deleuze, “a própria imagem actual tem uma imagem virtual que lhe corresponde como um desdobramento ou um reflexo” (ibidem, p. 98). Há uma «coalescência» entre o “actual e o virtual (ou os espelhos enfrentados); o límpido e o opaco; o gérmen e o meio” (ibidem, p. 101).
Conforme exigia Robbe-Grillet, trata-se de um género de descrição absolutamente particular, que já não cai num objecto distinto (actualizável) mas absorve e cria o seu próprio objecto.
Diferentemente da imagem-movimento, que resulta dum prolongamento motor gerando assim grandes circuitos — imagem-sonho, imagem-lembrança, imagem-mundo — o opsigno (e sonsigno) cessa esse prolongamento motor, encontrando o seu verdadeiro elemento genético quando a imagem óptica actual cristaliza com a sua própria imagem virtual sob um pequeno circuito interior. Mas torna-se importante salientar, como nos diz Deleuze, que “a indiscernibilidade do real e do imaginário, do presente e do passado, do actual e virtual, não se produz de nenhuma maneira na cabeça ou no espírito mas constitui o carácter objectivo de certas imagens existentes, duplas por natureza” (ibidem, p. 99), imagens mútuas (como disse Bachelard a propósito do cristal) (Cf. p. 44).
Deleuze é claro: No cinema clássico, “A imagem-movimento constitui o tempo sob a forma empírica, o curso do tempo: um presente sucessivo segundo relações extrínsecas do antes e o depois, de tal modo que o passado é um antigo presente, e o futuro, um presente que virá” (ibidem, p. 359), o que nos permite “numerar” o tempo. Esta medição pode assumir dois aspectos: ou ser a unidade mínima de tempo como unidade mensuradora do movimento ou então pode considerar-se como a totalidade dos momento do tempo (o máximo do movimento no universo), respectivamente, o subtil e o sublime (Cf. ibidem, p. 360). Porém facilmente chegamos à conclusão que o tempo como unidade ou como totalidade depende da montagem, que o refere ainda à sucessão de planos. Desta forma a imagem movimento está ligada fundamentalmente a uma representação indirecta do tempo.
Pelo contrário a pretensão do novo cinema é promover uma postura não empírica ou metafísica. Como nos refere Deleuze, “a imagem-tempo não implica ausência de movimento (ainda que suponha o seu enrarecimento) mas sim implica a inversão da subordinação; já não é o tempo que está subordinado ao movimento, mas o movimento que se subordina ao tempo” (ibidem, p. 360).
Longe de considerarmos o tempo como derivante do movimento, são as aberrações do movimento que agora dependem do tempo. E é curioso que tais aberrações do movimento (irracionais) são agora essência da imagem e já não acidente.
A imagem clássica, funcionava nas coordenadas do cérebro como um encadeamento de imagens que se prolongavam segundo leis de associação, contiguidade, semelhança, contraste ou oposição. Por outro lado tais associações interiorizavam-se num todo conceptual — integração — que ao mesmo tempo se exteriorizavam incessantemente em imagens associáveis ou prolongáveis, já num processo de diferenciação. Ora, o todo funcionava como um todo aberto e alternante (“cambiante”), sendo que o fora de campo era definido por este duplo aspecto: comunicação com um exterior e a expressão de um todo alternante.
O dado imediato consistia no movimento e seu respectivo prolongamento, sendo o dado mediato a representação indirecta do tempo, de um todo que mudava. Mas tanto a interiorização do todo como a exteriorização da imagem, nada mais eram que o Verdadeiro como totalização.
Ao prolongarem-se, mediante cortes racionais, as imagens formam assim, entre duas imagens ou duas sequências, um mundo prolongável, e “o corte, chamado «racional», forma parte de um dos dois conjuntos que o separa (fim de um, começo de outro)” (ibidem, p. 242). Os cortes entre imagens são anulados pela montagem, pela referência à totalidade orgânica.
A tentativa de Godard é precisamente a de quebrar com este regime orgânico, para ele virtualidade hermenêutica, não está no conteúdo das imagens, mas na “auto-destruição” das imagens que resulta na valorização dos interstícios, “um espaçamento que faz com que cada imagem se arranque ao vazio e volte a cair nele” (ibidem, p. 240). Em lugar de termos um todo como sequência mediante o método de associação, neste novo cinema “dada uma imagem, trata-se de eleger outra imagem que induzirá um interstício entre as duas (…) dado um potencial, há que eleger outro, não um qualquer, mas de tal forma que entre os dois se estabeleça uma diferença de potencial, que produza um terceiro ou algo novo” (ibidem, p. 240). É no jogo dos interstícios, das fissuras, dos diferentes níveis e potencias que se constroem as possibilidades de sentido e interpretação. Godard não opera na base da associação, mas na diferenciação. Ou noutros termos, “o que está primeiro em relação com a associação é o interstício” (ibidem, p. 240) — o “entre-dois” constitutivo das imagens que possibilita não uma totalidade Una, mas o vazio (fora) que já não é uma parte motriz da imagem.
Na nova imagem “já não temos uma imagem indirecta do tempo que imana do movimento, mas uma imagem-tempo directa de que o movimento deriva” (ibidem, p. 175), já não se trata de um tempo empírico, mas puro. É uma imagem que já não têm exterioridade (fora de campo — contexto —), e tampouco interioriza um todo, tem antes um poder de devolver-se sobre si mesma.
O todo já não é o aberto, mas o fora, isto é, o pensamento (que nem sempre existe mas aparece como possibilidade) nasce de um fora mais profundo, mais longínquo de qualquer mundo exterior, e, como potência que já não existe, todavia, enfrenta um impensável ou impensado mais profundo que qualquer mundo exterior. Já não há momento de interiorização (integração) nem de exteriorização (diferenciação), mas sim o confronto com um fora (e um dentro) mais profundo (intenso) e independente de qualquer actualização num mundo exterior, ou qualquer interiorização ou integração num todo como consciência.
Deleuze identifica este fora — este ponto irracional — com o “inevocavel de Wells, o inexplicável de Robbe-Grillet, o indecidível de Resnais, o impossível de Marguerite Duras, ou inclusive isso que poderíamos chamar de «incomensurável» de Godard (entre duas coisas)” (ibidem, p. 243).
Se a imagem indirecta do tempo se constrói no regime orgânico obedecendo às situações sensoriomotrizes, a imagem-tempo directa vê-se, num regime cristalino, segundo situações ópticas e sonoras puras.
A pureza da nova imagem implica a ausência de um tempo empírico, de encadeamentos racionais, de uma totalidade orgânica, de um mundo exterior, de um fora de campo, de um contexto, de voz off, de critérios lógicos, de verdades, precisamente por ser uma imagem que rompe o vínculo com o mundo (com o mundo que nos habituamos a olhar), posicionando-se num nível superior, ao promover o impensado no pensamento.
Já não me restam dúvidas que estes estudos de Deleuze são de facto das obras filosóficas mais “ricas” que tive a oportunidade de ler. É um tipo de leitura que se pressupõe sempre inacabada, e por isso sempre continuada.
O que mais apreciei neste autor não foi propriamente a originalidade do pensamento ou reflexão10 (é certo que dele, ainda só li estes estudos), mas sim o facto de ser um filósofo que denota claramente uma linha de pensamento que exerce em mim especial simpatia: a ruptura dos cânones da razão, das categorias ou axiomas, da objectividade absoluta, do espaço lógico onde pudéssemos inserir todo o nosso discurso (como é o caso do neopositivisnmo), dos juízos de valor não questionados ou rearticulados pela experiência, da ideia de uma única linguagem, e sobretudo o seu manifesto distanciamento da subordinação da arte a leis, de uma semiologia da arte — o dia em que a arte tiver de obedecer a leis, será o seu fim, ou, como diz Deleuze “nenhuma determinação técnica, aplicada (psicanálise, linguística) ou reflexiva, é suficiente para estabelecer os conceitos do cinema mesmo (…) os conceitos do cinema não são dados preestabelecidos do cinema” (ibidem, p. 370-371).
Autores como Deleuze permitem-nos pensar a arte (e o cinema em particular) como uma recontextualização incessante de tudo o que a memória evoca, alargando, deste modo, a fronteira dos possíveis, e a fronteira do próprio pensamento.
É certo que a minha tentativa foi (na medida do impossível) a de expor uma visão global das reflexões filosóficas que Deleuze faz do cinema, e por isso é com certeza uma visão redutora, mas também me pareceu redutor (e de certa forma injusto) apenas especificar um ou dois aspectos do seu rico pensamento. Por isso, o que posso fazer é aconselhar a leitura destes estudos com tempo e devoção.
É de facto possível fazer, mais do que uma história ou teoria do cinema, uma Filosofia do cinema, e não tenho a menor dúvida que a contextualização filosófica estimula de facto todo o processo criativo, na medida em que este, queira-se ou não, parte de ideais/ideias.
A conclusão a que posso chegar, e aqui julgo estar em consonância com o propósito de Deleuze11, é a de que o cinema, mais do que acção, “suspense” ou medo, mais do que sentimento, mais do que um estado de sonho ou participação imaginária, mais do que informação, mais do que estabelecer ralações mentais, deve fazer-nos pensar, reflectir… “assim pois, a verdadeiramente rica ou «típica», é a imagem óptica” (ibidem, p. 69).
Ouso mesmo afirmar12, que o primoroso e deslumbrante serviço que Deleuze nos prestou com esta obra, poder-se-ia sintetizar com o slogan que se segue: “o cinema dá que pensar”.
Artur Moura (protected by email obfuscator)
Notas
1. Deleuze, G., La imagen tiempo, Estudios sobre cine 2. Barcelona: Paidós, 1986, p. 172.
2. Deleuze, G., La imagen tiempo, Estudios sobre cine 2. Barcelona: Paidós, 1986, p. 178. O itálico é meu.
3. Em que o personagem do patife ou o falsificador não é tomado num sentido pejorativo, mas exactamente aquele que é capaz de falsificar as situações, e capaz de criar sempre novos possíveis, novas probabilidades. Colocar-se acima de todas as categorias utilizadas na lógica.
4. Cf. Ver opinião de Jean-Louis Schefer, tão bem propositada na argumentação de Deleuze.
5. Cf. Deleuze, G., La imagen-movimiento, Estudios sobre cine 1. Barcelona: Paidós, 1986, p. 277.
6. Deleuze relaciona a sua reflexão sobre o cinema à concepção de Henri Bergson sobre a natureza do movimento e do tempo.
7. Cf. Deleuze, G., La imagen tiempo, Estudios sobre cine 2. Barcelona: Paidós, 1986, p. 173.
8. Critérios orgânicos que estariam na base de um espaço hodológico.
9. Daí a tendência do desaparecimento da montagem em benefício do plano sequência.
10. Visto que a base das suas principais reflexões são assumidamente suportadas por autores como Bergson, Peirce, Heidegger, Nietzsche, Jean-Louis Schefer, Bachelard, Artaud, Kierkegaard ou Leibniz… assim como autores que, embora não tenha visto citados, com certeza que fazem parte do posicionamento filosófico do autor, como Wittgenstein (o segundo), Rorty ou mesmo Derrida.
11. Da leitura que fiz dos dois volumes (imagem movimento e imagem tempo), podemos considerar que Deleuze, paulatinamente, encaminha-nos para um tipo de imagem ideal — a imagem pensamento — que põe o pensamento fora de si mesmo, porque está fora da acção, fora do saber.
12. E aqui trata-se, como é óbvio, de uma mera opinião pessoal, que apesar de tudo julgo ser fundamentada. Ao longo dos estudos, senti que Deleuze, apesar de reconhecer e expor devidamente as vantagens e desvantagens das diferentes imagens por ele classificadas, senti um claro pendor intelectual/elitista (não se tratasse de um filósofo) que me levou a considerar que de alguma forma privilegia o cinema de cariz experimental (imagem tempo), de um novo cinema.


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